sábado, fevereiro 26, 2005

Um de trinta e três

"Não, meu amigo, não é dela, é mesmo dos comboios das cercanias de Madrid, e da forma como eles se aproximavam das cidades sem que déssemos por isso. Adormecia embalado tantas vezes nesses comboios, e tinha calor, e tinha frio, e sentia medo, e estava sempre a chegar e a ir-me embora – e acordava em Atocha, onde um dia homens fizeram explodir bombas em mochilas, matando todos os meus amigos. Guadalajara, Alcalá, Azuqueca de Henares – eram as terras de La Mancha, as terras da pedra negra, e eu entrava nas casas de quem me abria a porta e comia bolos cobertos de pasta de açúcar, via aqueles quadros tristes com as crianças de olhos grandes, os cães de olhos grandes.

Por isso sei que vais compreender que é daqueles comboios que sinto falta, e não dela. É claro que sinto por vezes a falta da sua cabeça abandonada no meu ombro, ou mesmo da sua mão a procurar a minha enquanto o comboio passava por aquelas aldeias castelhanas com torres, cada uma delas perdida na imensidão da meseta lembrando uma cruz exposta ao sol dormente – o que Miguel Torga descreveu como “um cadáver alumiado por uma tocha”. Mas dou por mim a desejar poder viajar outra vez nesses comboios sem a conhecer – olhando à distância enquanto ela carrega as suas coisas pesadas sem a ajuda de ninguém. Assim, Chamartín seria só meu, e se não conhecesse ninguém não teria medo de reencontros. Quero ter os sítios sem dor, conhecê-los apenas pelo que são, pelas pessoas anónimas que os povoam, e não pelas lembranças que os contaminam.

E é por viver agora numa cidade sem cheiro (sem tristeza, sem alegria) que me lembro com especial carinho da Gran Via e dos donuts pela manhã na Gran Via, e das prostitutas da Gran Via a irem para casa e dos funcionários municipais a lavarem com grandes mangueiras o esperma seco que cobria a Gran Via. Em Madrid só conheci as fachadas, os cafés que mais ninguém escolheu, as “bocatas calamares” que alguém já mastigou – e por isso Madrid para mim são os comboios, as estações, os comboios armadilhados e eu dentro deles com aquele que foi um dia o meu amor, e as estações a explodirem todas e as minhas costas cravejadas de vidros.

Nunca no centro, amigo, nunca no centro: em escolas dos subúrbios, nas casas de banho dos pavilhões desportivos, nas faldas das faldas mas nunca no centro. Cibeles, Castellana, Moncloa, Sol – tudo o que guardo desses sítios é as placas que indicavam para eles, são as pessoas que adoeceram e se espalharam pela península, as pessoas que me pediram tempo, espaço, paz.

Aventurar-me-ei um dia para fora das estações, mas não agora. Chegarei ao pôr do sol a uma dessas aldeias junto à linha de comboio e procurarei um sítio para dormir. Quando acordar, sairei do caminho e irei à desfilada pelos montes. Eu sei que há milhões de planos a serem feitos, milhões de ideias a germinar em mentes que querem atenção, milhões de crianças a crescer e a pedir amor. Eu sei isso melhor do que ninguém. E também sei que tudo isso vai continuar depois de eu morrer.

E depois um dia o sol vai engolir a terra e eu estive a falar-te dos comboios das cercanias de Madrid. Tanto que eu perdi, amigo – tanto que vamos perder. E o pior de tudo é perder em casa, e continuar em casa."



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