sábado, junho 26, 2004

Um mundo sem amor (III)

Quando estava em Paris comecei, por virtude da ausência de grandes inconvenientes nas minhas deambulações diárias, a confiar numa espécie de intuição a que confortavelmente chamava orientação divina. Quando saía de uma estação de metro, por exemplo, dizia para mim próprio ‘preciso de um sinal’ para saber para onde me dirigir e exactamente onde me situar no mapa – resultado: quase nunca me enganava. Era assim que entrava e saía de ruas, escolhia caminhos e, em geral, confiava em mim próprio, e como cada rua e caminho tinham algo de bonito ou surpreendente eu nunca me arrependia das minhas escolhas. Foi por isso que ao chegar àquela bifurcação perto da Bastille, onde se encontrava uma pastelaria, eu parei, hesitando por momentos, decidindo se havia ou não de entrar. O facto de um homem ter entrado no preciso momento em que duvidava serviu-me como o sinal de que estava à espera. Lá dentro pedi um Paris-Brest e a funcionária corrigiu a minha pronúncia, acentuando o ‘st’ final, de uma forma que não deixei de achar um pouco rude. Tínhamos combinado nos degraus da Ópera Bastille para um passeio, e eu tinha passado a manhã toda a caminhar desde Stalingrad ao longo do canal de S.martin cortando depois por uma avenida que não me lembro o nome (Chemin Vert?) até ao Cemitério Pére Lachaise onde ao princípio não queria ir. Tinha estado a ver as sepulturas de Proust, Wilde e claro Jim Morrisson, embora não me tenha entusiasmado muito com esta última.

Não conversávamos muito. Eu dei-lhe o Paris-Brest e ela comeu um pouco e guardou o resto na mala. Chegámos ao Sena e cruzámos junto ao ministério das Finanças (gare de Austerlitz, acho), e depois parámos num restaurante fast-food para ela beber café e comer o resto do bolo. Quando estávamos sentados eu falei brevemente sobre os meus amigos de Lisboa e depois pedi-lhe desculpa por tê-la desrespeitado na primeira noite ao ponto de a ter beijado. Saímos do restaurante e eu voltei a entrar para ir à casa de banho e o meu cabelo estava horrível e fomos até à biblioteca nacional François Midterrand com uma floresta no meio e foi aí que nos sentámos. Ela contou-me de como o pai chorou no dia em que a foi deixar ao aeroporto e como lhe preparou um pequeno-almoço, dias depois daquela discussão tão grande, e o pai dela nunca gostou de mim, julgo que por também ter sangue português – os portugueses detestam-se todos em países estrangeiros. E o sol estava a ficar fraco e tudo isso e eu não falava muito e não havia de facto muito para dizer e tudo estava tão acabado e tudo tão triste, e caminhámos até Jeanne d’Arc onde eu queria ver uma igreja mas esta estava fechada, e depois até à Place d’Italie em busca de uma padaria aberta e por isso acabámos por ir a um centro comercial mas todas as lojas estavam fechadas o que era estranho porque havia algumas pessoas a passear – e depois acabámos por ir comprar pão à rue de Mouffetard, de modo que caminhámos imenso.

Mostrei-lhe orgulhoso a casa de Hemingway mas ela desvalorizou-a um bocado assim que percebeu que ele tinha vivido lá apenas cerca de um ano. E já não me lembro mas acho que uma vez mais não tinha almoçado nesse dia por isso ao jantar comi com apetite e queria ver os '10 Mandamentos' na televisão mas não se via imagem, só o som da dobragem em francês e a música dramática, épica, de modo que me aborreci um pouco e ela adormeceu por volta das dez e eu fiquei sentado no sofá, no quarto silencioso, durante muito tempo até me juntar a ela na cama com um silencioso ‘com licença’.

Encontrei a sepultura de Marcel Proust graças a um homem sentado num banco de pedra, no quarteirão 85 do imenso Pére Lachaise. Era uma sepultura simples, familiar, quase despercebida no meio de outras iguais. Havia algumas pedrinhas em cima do tampo por isso eu coloquei a minha pedrinha também apesar de nunca ter lido Marcel Proust. Julgo que aquele ar devia estar cheio de coisas podres, mas o bom tempo só prometia pureza, juventude.


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