terça-feira, maio 09, 2006

cessa de existir, ó meretriz

Lamento a irregularidade na "actualização" deste blogue. Tenho andado bastante ocupado nos últimos tempos, e pouco virado para estas coisas. Hoje de manhã voltei a ler alguns posts e pensei que é pena que não se tenha ido mais longe com isto.

Mas "My Love Life", como já deviam suspeitar, morreu. Desta vez é que é. Agradeço as visitas e espero que continuem a passar por cá, se quiserem. Eu voltarei com certeza.

terça-feira, março 21, 2006

Düsseldorf, 1992

No segundo andar da antiga casa, numa marginal residencial ao Reno, os dois irmãos procuram entreter-se, por entre retratos cinzentos de família, por debaixo de um telhado outrora esburacado pela guerra, por cima de um soalho de madeira que range histericamente.

Submergindo na escuridão dos armários, emergem pouco depois vitoriosos, às gargalhadas, com uma pequena caixa de cartolina. Abrem-na, retiram do seu interior um grande painel colorido com o mapa do mundo e cobrem-no com pequenas peças bélicas em plástico. Deixam depois rolar os dados da sorte e as cartas ditar o destino.

Os frágeis passos da senhora, de óculos de leitura a balouçar na cana do nariz, prenunciam o fim da fantasia. Quando entra na sala e vê os netos estendidos no chão à conquista do mundo, estremece. “Isto não se joga aqui em casa”, diz, de voz rouca e tremida, enquanto junta as peças, dobra o mapa e faz a caixa de cartolina voltar a desaparecer nas profundezas do armário.

segunda-feira, março 20, 2006

Depois

O som do avião fica muito tempo por debaixo das nuvens, entre os prédios, incapaz de sair. Chove, é noite, tenho frio. A tua casa está à espera, à espera que regresses.

Abri o pacote de leite e despejei-o inteiro na jarra, e só depois o coloquei no frigorífico. Era assim que fazias. Punhas a jarra do leite na mesa das refeições. Querias os alimentos todos fora das embalagens, dos plásticos, das cores fortes dos rótulos.

De manhã, eles ficam a olhar para mim com aqueles olhos do Biafra, a remoer os bolos na boca, as pernas a abanar nas cadeiras, longe do chão - já todos vestidos e equipados para sair. Eu fico encostado ao balcão da cozinha a olhar para eles. Empurro uma torrada e os comprimidos com leite. Não digo nada: eu sou o estranho, o passageiro. Eu sou o que ficou.

Telefonemas de noite deslizam para conversas breves deslizam para combinações vagas para jantar, sair, "tomar café". Eles brincam na sala e nas suas brincadeiras matam e morrem, e quando eu entro eles ficam a olhar para mim com aqueles olhos de outra raça. Todos estamos à espera.

Não há informação. Não há relatórios oficiais. Alguém terá o meu contacto? Terão sido "despoletados os mecanismos habituais"? E se ligarem quando eu não estou em casa? O som dos carros a amaciar as ruas à chuva, e o som da chuva nos carros estacionados em frente à janela. As árvores bebem, a água entra pelas pequenas superfícies de terra da cidade (os canteiros sujos, as fendas nos pavimentos), e penetra mais fundo, é atraída para baixo, até a gota deixar de ser.

Deixaste umas coisas no frigorífico de que mais ninguém gosta. Deixaste uma toalha com o teu cheiro atirada para um canto da casa de banho. E o teu cheiro desvanece-se lentamente, partícula a partícula, e a toalha ainda lá está. Fizeste umas encomendas que chegarão em breve, deixaste um casaco na lavandaria que terei de ir buscar.

O som metálico da cidade e as pessoas como pequenos invólucros a saltitar na rua. É estranho que o mundo não acabe, agora que já cá não estás. Tudo demora muito tempo a passar, e as coisas ficam presas entre as nuvens e os prédios, incapazes de sair. Faltas tu. Estamos à espera.

quarta-feira, março 15, 2006

Lisboa, 1993

À saída da sala de aulas, no intervalo, aglomeram-se ao alto das escadas, apontam-lhe os dedos em riste, e gritam, em coro, às dezenas: “monhé, monhé, monhé”. Desce os últimos degraus, sai do edifício com a bola por debaixo do braço, e vai treinar contra uma parede.

terça-feira, março 14, 2006

O sol que aquece

Na ilha de Sifnos há reentrâncias de costa, pequenas enseadas rochosas onde o mar atinge grandes profundidades - a poucos metros dos sítios onde as casas, e as cabras, brancas, se encavalitam. Os mais audazes e os mais tranquilos mergulham directamente das rochas para a água escura.

Encontrámo-nos num autocarro que ia para Lisboa, e falámos durante quase três horas sem nunca nos olharmos nos olhos. Sentado à janela, eu via desfilar este país queimado e ouvia a voz dela, e falava pouco. Tínhamos tido um verão de amor criança, numa terra da qual não importa aqui falar.

Ela contou-me das oliveiras de Sifnos. E do azeite que era deles os dois, já que o terreno era deles e por conseguinte as oliveiras e por conseguinte as azeitonas, e os vermes da terra grega. A casa branca, de geometria adaptada às arestas das rochas, com dois pequenos terraços sobre o mar. Uma escadinha até lá abaixo, ondas pequeninas a lamber os pés. Ela contou-me das idas matinais ao mercado em Kamares, o caminho de terra em sandálias, o tecido de linho da sua saia, o saco de pano onde trazia, de volta a casa, pão escuro, pimentos, laranjas, peixe que poucas horas antes ainda vivia.

E os mergulhos do meio dia: o mar profundo, a descer de temperatura à medida que ela, sustendo a respiração, se aventura mais abaixo, em busca do leito. Um som que contrasta com o absoluto silêncio da superfície, como dedos a pressionar os tímpanos, como peixes libertando bolhas, como rochas estalando, barbatanas rápidas que surgem de súbito, vindas de longe, e para longe voltam.

Ela volta à superfície e os seus cabelos negros roçam os ombros, as costas, pingos fazendo trilhos ao longo do corpo, antes de se evaporarem ao sol que aquece.

Os ombros morenos dele sabem a sal na casa escura, na cama baixa, à hora da sesta. Beijam-se com lábios secos, de forma simples, e dormem em segurança. Ao anoitecer, depois de uma tarde de trabalho e tarefas, vêem o sol filtrado em copos de vinho. Algures alguém canta, uma bicicleta toca sinos ao longo de um caminho longínquo, o vento arrefece e um leve casaco de malha, as lanternas da costa, um barco ao longe, Poseidon que se espreguiça.

Devíamos ter-nos casado. Deviam ter-nos levado para o altar quando tínhamos quinze anos. Aprenderias a amar-me, porque é preciso aprender a amar-me. Estas coisas não acontecem naturalmente - pelo menos não comigo. Não devias ter desistido tão cedo. Onde apanhar o 78? Era nestas coisas que eu pensava, depois de, já em Lisboa, me ter despedido dela apressadamente.

sexta-feira, março 10, 2006

Os olhos bem fundo no espelho

Noite cai sobre Mayfair, faróis de carros em superfícies molhadas e as silhuetas das pessoas não têm cara. Marriott Park Lane, 3º andar: põe de lado o roupão e os chinelos de oferta e abre a mochila, olha para dentro, fecha a mochila. Vai à casa de banho. Põe de lado os sabonetes e os amaciadores e as esponjas e tonificadores e exfoliantes e desmaquilhadores - de oferta - e lava as mãos com água fria. Passa as mãos em frente da cara, duas vezes, como se quisesse lavá-la. Volta ao quarto. Senta-se no chão. Olha pela janela.

Atrás de si, a cama que permanecerá por usar. Lá fora buzinas, faróis de carros na rua molhada e os vultos sem cara, sem coração. Nas entradas sacudindo guarda-chuvas. Saltando para evitar poças de água, ombros batendo em ombros. Alguém é quase atropelado, alguém beija alguém. No cruzamento, um cartaz com pernas, braços e cabeça anuncia, às voltas, uma feira de computadores. Até a publicidade tem sangue. As pessoas precisam de um sítio para ir. As pessoas precisam de comida na boca. Até a comida tem sangue.

Quarto escuro, passos no corredor que se esvaem num som de porta a bater. Levanta-se e desenrola uma esteira. Senta-se. Fala baixo durante muito tempo. Abana o corpo, olhos fechados. Chora. Depois de terminar, revê mentalmente os planos para o dia seguinte. Sair cedo. Depois Holborn. E pronto.

Houve um dia uma princesa - e um laranjal. Houve um dia um beijo na testa, e alguém que segurou a sua cabeça de criança entre as mãos. Nas montanhas da Caxemira uma serpente esconde-se entre pedras, à beira do caminho. O viajante passa.

No dia antes do martírio, o mujahid rapa cuidadosamente a barba.

segunda-feira, março 06, 2006

Jonathan

Os bebés aparecem primeiro nos sonhos. Na noite de 21 para 22 de Março de 1965, o meu filho estava caído num prado, junto a cavalos com asas que distraidamente comiam. Envolto em panos presos por alfinetes de ama, o meu filho sangrava com abundância, mas não havia feridas no seu corpo adulto - apenas o sangue que brilhava, e os seus olhos e os seus dentes cerrados, rangendo, como numa febre.

Eu estava a seguir o sonho, a perseguir o céu que acima de mim obscurecia - como no Inverno, só que mais rápido. O sonho dentro do sonho, um pé de fora do cobertor, do sonho. Dizer que não a tudo isso. E o sonho regressava implacável - uma vaga - o meu corpo adormecido suado na cama a remexer-se dizendo não, os gemidos do meu filho moribundo. A lua a levantar-se, os cavalos dispersavam, rápidos, brancos, de súbito.

O meu filho de repente pairava diante de mim, anzóis que finalmente lhe rasgavam a pele e o puxavam para cima, para o céu. Ele suplicou-me numa voz rouca: "Faz-me!".

Por isso, na noite seguinte eu saí à rua e entreguei-me, mulher, na minha inocência, a minha inocência - ao rapaz distante e calado, de sorriso amarelo e rosetas na cara.


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