sábado, junho 26, 2004

Um mundo sem amor (IV)

Domingo de páscoa: eu não quero este dia. Saio na estação de metro de Ballard. Eu nunca estive aqui. Ballard é o nome do autor de Crash, de Hello America, de Empire of the Sun, de The Kindness of Women, de The Atrocity Exhibition. Ballard é um bairro suburbano no sudoeste de Paris, eu saio em Ballard e é domingo de Páscoa e eu não quero este dia e procuro uma cabine telefónica assim que saio, desorientado, da estação de metro. Está sol e na cabine telefonica eu, eu abro os braços e encosto as mãos nos vidros da cabine e olho para o chão sujo cheio de vidros pequenos e respiro fundo, depois abro o mapa e fecho o mapa e meto o mapa no bolso de trás das calças e respiro fundo. Durante este tempo todo eu estou a segurar no bocal do telefone e há lá dentro uma voz feminina a dizer que o número que marquei não está disponível.

Depois o parque André Citroen e aquele domingo triste, cheio de sol e o Sena suburbano e as famílias suburbanas e joggers e eu sento-me num banco e fico calmo. Leio umas páginas do Huckleberry Finn e escrevo um poema, talvez dois. Estou de costas para o rio e num banco junto a mim o habitual mendigo dorme. Depois ponho-me a andar e e volto para trás e sigo por outro caminho e vou olhando para o mapa, e compro uma banana e uma maçã e penso em urinar. Ela tinha chegado a casa às dez da manhã, ainda bêbada, acordando-me com um grito jovial de pequeno almoço. Depois uma música na cozinha e eu na cama a pensar eu não quero este dia e eu a percorrer avenidas sozinho a pensar em urinar e na música 'se estás com medo tens de sair correndo', e eu acabo por ir urinar aos Invalides a cerca de 100m do túmulo do Napoleão, e nessa altura eu já amo Paris por isso nada me importa.

Depois, no museu Rodin, eu iria sentar-me no jardim e olhar para os Burgueses de Calais e iria começar um poema chamado Burgueses de Calais cujo primeiro verso era houve um tempo em que as ruas eram escuras e o pão salgado, e nunca cheguei a acabar esse poema, e nesse dia mais uma vez não almocei – acetona na minha boca é Paris também.

E o cheiro a café? O cheiro a café naquela manhã enquanto eu tentava voltar para o sono enquanto a música se estás com medo tens de sair correndo, e eu naquela cama era uma das pessoas mais infelizes que conheci e não queria aquele dia e mesmo assim tinha sempre bilhetes de metro, bilhetes inesgotáveis, e pernas, pernas boas e jovens – e uma bexiga formidável que aguentava até aos Invalides. Tinha-me a mim, só a mim, e já não era pouco.

Tenho andado a espalhar a minha urina pelas casas de banho e ruas mais estranhas deste mundo, e mesmo assim não estou cansado.


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