sábado, junho 26, 2004

Pinar de Antequera

Valladolid, Valladolid, o que mais me lembro de Valladolid é dos bairros residenciais nas cercanias a que chegávamos de comboio, aquelas tardes preguiçosas de Outono em Pinar de Antequera e andávamos de bicicleta pelas ruas desertas esmagando as folhas que caíam, acelerando de sombra em sombra, e ao fim da tarde ficávamos nos bancos de trás da missa naquela pequena igreja moderna, misturando-nos à saída com os vizinhos que se conversavam. Como o meu aniversário em Valladolid naquele Outono dourado, triste como uma laranja espremida e eu a chegar às quatro da manhã no comboio e aqueles três malucos que não via há um ano a esperarem-me na estação vazia com um balão, de modo que em Pinar de Antequera passávamos as tardes a andar de bicicleta naqueles bairros de vivendas e pedalávamos até chegar ao limite e encontrar uma estrada ou um descampado e então ficávamos parados a olhar para aquilo durante demasiado tempo, antes de voltar para trás.

Na casa do Felipe eu movia-me como num sonho, todos aqueles quartos e aquelas cabeças de criança a espreitarem-me de todos os lados, os tectos altos e os cães no largo quintal com um imenso pinheiro que eu achei que devia ter um espírito que sentia tudo e todos - o Felipe com a sua guitarra e o aparelho de dentes que usava de noite e que parecia um açaime ao estilo Hannibal Lecter. Pobre Felipe, dificilmente encontrarei alguém que me cative tanto com a sua força humana, a sua fúria triste: O Felipe a oferecer-se para me mandar ácidos pelo correio, o Felipe a arder de febre deitado numa rede em La Guaira, o Felipe vermelho enraivecido a lutar contra um banco de autocarro, o Felipe a ir ao mar de botas.

Por isso, Valladolid, Valladolid, lembro-me do último dia em Pinar de Antequera e o último duche, e a casa imensa, escura e tranquila em mais um anoitecer de Setembro e o Felipe a tocar no violino a música do filme A Missão. Lembro-me da Tania ao telefone e eu a perguntar-lhe porque é que não estás aqui e ela a responder-me porque não posso, lembro-me de uma discoteca onde uma rapariga lambia a orelha de um homem careca e lembro-me também de uma pintura de El Grieco que vimos num palácio qualquer - e alguém ficou a explicar-nos durante muito tempo aquela pintura de Jesus morto e já não me lembro se no quadro também estava Maria, mas Jesus tinha acabado de ser descido da cruz, isso sim - e por isso para mim Valladolid é Jesus ter morrido por todos nós.


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