sábado, julho 24, 2004

Almoço de Sábado

Hoje o acordar foi diferente. Quer dizer, todos os dias o acordar é diferente e as minhas madrugadas têm normalmente sangue, visitantes, profecias, julgamentos. Porém, hoje foi fisicamente diferente: três segundos antes de acordar eu já não estava a dormir. Explico: eu hoje ouvi-me a ressonar. Agora não sei se foi uma descoordenação por parte do meu organismo, ou se foi o meu ressonar que me despertou. Também não sei se isto é normal, mas senti-me estranhamente privilegiado por ter assistido, sobre um limbo normalmente fugidio, ao desenrolar da minha inconsciência.

Eu estava a sonhar com a minha família, com a minha pobre família, sempre a correr de desgraça em desgraça. Uma família que só se junta, só se define pelas desgraças. Estava a sonhar com telemóveis que se ligavam a aparelhagens e transmitiam mensagens em festas de aniversário. Eu era o responsável por que tudo corresse bem. Quando acordei o sol de ontem tinha desaparecido, e as nuvens frias da Grã-Bretanha estavam de volta. Fiquei aliviado. Para além disso, a pressão sobre as minhas têmporas tinha-se dissipado ligeiramente. Fui tomar duche e, devido a algo que puseram no ralo para evitar o mau cheiro, agora a água não passa - tive de me apoiar nas bordas do poliban para que a água não transbordasse. Senti-me como um homem-aranha, como um ladrão.

Com a toalha enrolada à volta da cintura, em tronco nu, andando lentamente pelos corredores escuros do apartamento: apercebi-me que tudo estava estranhamente silencioso há pelo menos dois dias. Há pelo menos dois dias que não tenho uma conversa com uma pessoa de carne e osso. Estarão todos mortos? Ou terei eu morrido? Será que alguém ainda lê o meu blog?

O meu almoço: um tomate, metade de um pimento amarelo (guardei a outra metade no frigorífico), alface, queijo feta cortado aos cubos, massa (espirais tricolores a cozerem durante exactamente 11 minutos). Depois de escorrida, a massa é arrefecida com água fria, depois junta-se aos vegetais e ao queijo e é temperada com um fio de azeite e uma (ou duas) pitadas de orégãos.
Junto ao mar, pai e filho atiram pedras às gaivotas bébés que perto da zona de rebentação aprendem a nadar. Eu como com apetite q.b.: à minha frente a garrafa de azeite, just in case. A cozinha está silenciosa à excepção das ondas e das crianças que se agitam na rua, tentando destruir um gigantesco castelo insuflável. Penso se esta dieta de vegetais terá algum efeito em mim. Ficarei mais musculado? As vitaminas vão tornar os meus abdominais mais firmes e atraentes? Os pêlos nas minhas costas vão desaparecer? E as manchas no meu peito? E haverá algum efeito ao nível dos meus fluidos - na viscosidade do meu sangue, na composição das minhas fezes, no cheiro do meu esperma?

Como em silêncio. Penso em tornar-me vegetariano. Penso na minha imensa solidão de vegetariano num país latino, em que os pratos vegetarianos são basicamente os pratos normais de churrasqueira a que se retirou a carne. Vegetarianos: condenados a omeletes, arroz, anéis de cebola e uma azeitona. Penso se poderei partilhar os jantares de família, se o facto de me tornar vegetariano não será mais um argumento para os meus primos me chamarem de 'panasca'. Penso nisto tudo, e vou picando a minha salada com um garfo. Devia começar a comer com pauzinhos. Mais: devia andar sempre com os meus pauzinhos, e retirá-los ritualmente de uma bolsa de pano no meio do restaurante, quando estou com os meus amigos (a bolsa de pano teria motivos incas). Devia dar graças antes de comer. Devia descalçar-me e sentar-me na cadeira como um monge budista em meditação. Devia andar sempre de cabeça rapada. Devia falar por aforismos. Devia castrar-me quimicamente.

Depois penso num post chamado 'Almoço de Sábado'. A minha salada está quase a acabar e vou comer uma maçã verde, fresca. Vou descascá-la habilmente com uma faca. Imagino-me a escrever um post chamado 'Almoço de Sábado'. De faca na mão, imagino-me nesta cadeira, nesta posição, a escrever exactamente... estas... palavras. Depois, de faca na mão, imagino-me de faca na mão a descascar a maçã e a levá-la à boca. Penso se alguém iria gostar de mim se me visse assim. Junto ao mar, o pai (ou o filho) finalmente acertou com uma pedra numa das gaivotas bébés. Enquanto os dois festejam dando saltos, ela afoga-se, e à sua volta a água torna-se rosa, depois vermelha, depois quase negra. Pai e filho estão finalmente juntos, e por momentos o divórcio é esquecido. Eu penso numa variação de uma frase famosa do Morrissey: 'Por favor alguém me impeça. De pensar. A todo o tempo. Tão profundamente. De uma forma tão pessimista. Sobre tudo.' 


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