segunda-feira, julho 19, 2004

Minha família

Eu sento-me à janela com os pés à chuva, eu sento-me na poltrona em frente à televisão e vejo aqueles programas velhos até tão tarde. Eu sento-me num sítio onde o sol não bate - tal como o meu pai quando ele estava em casa.
Levámos mais golpes do que podíamos suportar, e por isso é de longe que vos escrevo. Passo grande parte do dia a ver a chuva e penso em vocês, na rapidez disto tudo, no desconforto. Algumas pessoas fizeram mais do que eu, alguns filhos foram mais amigos, mais saudáveis, estiveram mais perto. Algumas pessoas levaram menos golpes do que nós mas nestes dias a chuva lava os meus pés, os sítios por onde andei - e por momentos tudo se desculpa.
 
Mãe: eu não compreendo esse amor. Lembro-me de desejar, na minha fúria, que retirasses esse amor ou que simplesmente mo fizesses compreender. Desejava também que gostasses mais de ti do que de mim, porque o teu amor me sufocava e me deixava sem desculpas para falhar. Eu queria poder culpar alguém. O teu amor deixava-me sozinho.
E era difícil conciliar esse amor imenso com tudo aquilo que eu via, com tudo aquilo que tinhas de fazer. E as pessoas batem tanto umas nas outras e eu vi tantas coisas que estes olhos se tornaram mais meus do que tudo o resto, e tenho pesadelos em que fico cego, em que me esqueço do que vi, em que tenho de aprender tudo outra vez. E é injusto dizer que aprendi tudo sozinho (tu mostraste-me tantas coisas, Mãe!), mas às vezes parece que foi mesmo assim.
 
E o que mais quero dizer é que lamento não poder amar-vos dessa maneira. Lamento nunca ter dito nada que vos trouxesse alegria. Mas eu tenho saudades de ser pequeno e de vos surpreender, saudades de escutar as vossas palavras como se fosse a primeira vez. Sinto a falta de correr para acompanhar os vossos passos seguros, saudades de estender a minha mão para agarrar na vossa. Saudades de jantar com o pijama vestido nos domingos cinzentos - e as minhas pernas baloiçavam, nem sequer chegavam ao chão.

Isso foi, claro, antes destas coisas todas que correram terrivelmente mal. 
 
Eu venho de uma família onde não se fala. Venho de uma terra queimada, uma terra má. Nesta terra fazem-te crescer para fazeres as coisas que o teu pai fez. Nesta terra abandonam-te sem escolhas, e se hesitas nunca mais serás perdoado. (Mas, claro, isto não explica nada, e as coisas más nunca serão explicadas.) Eu vim de uma família cheia de amor, como todas as outras. E na minha família, como em muitas outras, o que é mais importante nunca é dito. Porque nunca escolhemos a nossa família, e o sangue é o factor de união mais aleatório que existe.
 
E eu não sei se é o animal em mim que gosta de vocês - o animal agradecido, o animal inseguro, o animal que cospe na mão que o alimenta. Não sei se é o menino, o menino para o qual era inconcebível que vocês alguma vez falhassem. Ou chorassem. Ou se portassem mal como as outras pessoas. Também não sei se é o homem - o homem que quer e não quer voltar, o homem sem espaço, o homem cuja vida lhe aparece subitamente à frente, o homem que não se reconhece.
Eu não percebo nada. Eu não sei como é que uma pessoa escolhe o que é melhor para a sua vida. Esta coisa que sinto é um mistério, mas vocês nem isso chegarão a saber. 
 
Por isso, Pai, não chores - eu gosto de ti. Tu esforçaste-te mais do que ninguém para seres o que eu esperava. Eu vejo um campo verde sem fim e uma bola de futebol salta entre nós os dois - nós damos grandes chutos, agora que as tuas pernas estão boas outra vez. A chuva vai lavar tudo, Pai, e eu queria ajoelhar-me diante de ti e chorar estas coisas todas cá para fora.


Free Hit Counter