sexta-feira, julho 23, 2004

Em Londres com o Miguel

'Não me importo de mentir para dizer algo que é verdade' - e foi assim que nos despedimos. Que não me importava de mentir, que o mais importante era a verdade que surgia no final, a verdade que emergia - a verdade dos sentimentos. O que somos, parecia-me, não se resume ao que fazemos, aos sinais exteriores e aos efeitos dos nossos actos. O que somos é um mistério, um mistério dentro de um mistério que só um mistério pode, talvez, revelar.

Eu andava a brincar com as pessoas, andava a brincar com o Miguel também, andava a manipular-me, a fazer malabarismos comigo. Mas precisava disso, fazia-me sentir que tinha alguma espécie de controlo, alguma palavra a dizer, do fundo da minha confusão e da minha distância. Onde eu estava, onde eu vivia, o Verão era indeciso e a chuva nunca parava - eu estava na verdade em Avalon, estava a viver um sonho dentro de um sonho. E nada me era revelado.

Eu estava apenas a ser sincero: a contradição do que dizia era o labirinto em que eu estava, o quebra-cabeças que me tinha tornado.

Oxford Street: dentro de uma HMV Miguel percorre as prateleiras de LP's, enquanto eu o observo. Miguel pára, faz os dedos percorrer uma fila de discos, com os dedos separa os discos e retira um. Olha em volta da sala, em busca de mim, e eu não faço qualquer esforço para que ele me encontre - apenas continuo no meu canto na secção de posters, a olhar para ele.
Isto é Miguel em Londres, isto sou eu com o Miguel em Londres e ele está a mostrar-me músicas de que gosta, títulos de canções, capas, fotos - ele está a desfilar estas coisas em frente dos meus olhos e eu penso no fedor de todas as minhas mentiras.

Mas não é apenas no Miguel que eu penso: eu penso na maré de merda que flui de mim, nas ondas e ondas de matéria impura com que infectei todos à minha volta. Penso nas pessoas que abandonei, as pessoas que enganei - penso nestes demónios, e estes corpos e mentes torturados lançam um grito intraduzível, um lamento de raiva. Eu olho para aquilo e sinto medo, apesar de estar longe.

Kensington: a tarde em Londres está quente e eu deito-me num relvado à sombra. O Morrissey poderia passar à minha frente e eu não me mexeria. O Miguel lê um dos seus livros nihilistas e eu tento adormecer: ando à dois dias a comer apenas bananas. Penso se isto que tenho cá dentro se pode de algum modo assemelhar a amor, um amor oprimido, preso por correntes, um desejo assassino de amor. Resolvo que o amor nunca pensaria estas coisas, o amor não teria estas dúvidas, e à medida que a minha frustração se avoluma eu penso se será a minha sina acabar por macular tudo com este ressentimento. Como se a vida me devesse qualquer coisa.

Por isso, para não mentir mais, eu fico calado em Kensington. Mas não será o silêncio uma espécie de mentira? Quando a alma está desejosa de produzir som, de expulsar, de transmitir em queixumes ruidosos alguma coisa que correu horrivelmente mal. Alguma coisa que não se sabe o que é.

Kensington: penso em fetos calcificados, na Princesa Diana, em fetos calcificados que dançam, com um chapéu alto. Penso em lojas, quilómetros e quilómetros de uma única loja: figurinhas pequenas e adoráveis no fim de um dos corredores, brinquedos, prendas que o meu irmão me daria. O dia em que conseguir chorar isto tudo vai ser o dia em que vou enfim perceber - vou andar para trás e para trás e vou-me deparar, no fim do túnel, com uma figura que personifica os meus fantasmas todos. E depois nós vamos lutar, e eu vou ganhar ou vou perder.

Miguel: demasiado amor, demasiado egoísmo. Há algo que me impele a abraçá-lo.

Paddington, à espera de um comboio. Gostava de servir para alguma coisa na vida do Miguel. Compreendo que sempre tentei moldar as pessoas à minha imagem. Tentei mudá-las para as integrar na minha perspectiva de ordem. A maior violência. Porque o Miguel vai ter de sangrar, mas eu espero que não sangre demasiado. Neste momento, não há nada que possa fazer pelo Miguel, e a minha impotência só me entristece porque desde o início pensei que poderia fazer alguma diferença. Espero que o Miguel possa voltar a sentir-se feliz - ainda que haja fantasmas e pensamentos que regressem sempre.

Comboio, Seven Sisters, para longe daqui. Miguel ficou em Paddington, eu vou fazer fogueiras para Deus sabe onde. No meu saco, cachos de bananas apodrecem. O meu sono no comboio é interrompido pelas coisas e barulhos que me pisam as têmporas. Eu não vou para lado nenhum em especial. Mas não há nenhuma razão para que isso seja pior do que um destino definido.

O que nos vai acontecer, Miguel? O que é que a vida nos tem reservado? Consegues perceber porque é que nunca serei verdadeiro? 1) porque o que está em mim é demasiado feio; 2) porque quero que o que está em mim se torne, um dia, bonito.

Uma coisa que ficou por dizer: 'Eu compreendo o que sentes. Eu estou aterrorizado. Mas eu tenho de tentar. E espero que tu também o faças'.



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