terça-feira, julho 20, 2004

Mario Terán

No dia nove de Outubro Mario Terán vai emergir de uma cubata junto à pista de aterragem de Vallegrande. Tudo vai estar queimado, amarelo, quente, nada em Vallegrande vai parecer hospitaleiro. Mario Terán vai emergir da cubata e vai estar bêbado porque é o seu aniversário e ninguém se lembrou - porque ninguém soube.
 
Mario Terán terá nessa altura sabido dos acontecimentos da Quebrada del Yuro: o bando de insurgentes esfaimados, acossados, cercados por todo o lado, forçados a correr de rocha em rocha, naquele leito ressequido, até à rocha final: a ponta da espingarda de um soldado. Mario Terán não terá estado nesse dia na Quebrada del Yuro, mas ao emergir da cubata ele vai tentar imaginar a cara dos prisioneiros - o preciso momento em que terão pensado que aquilo era o fim da linha.
 
Mario Terán vai arrastar a espingarda e sentir-se mal no seu uniforme, e vai estar bêbado debaixo daquele sol sem misericórdia e vai encaminhar-se para a escola abandonada de La Higuera, junto às ruínas da pista de aterragem de Vallegrande. Mario Terán vai pensar na sua terra natal, pensar basicamente na ausência de mulheres na sua vida, no triste que é um aniversário embriagado ali naquela terra esquecida de todos.
 
O líder dos prisioneiros terá dito ao capitão Prado Salmón: 'No se preocupe, capitán, no se preocupe. Esto es el final. Todo esta terminado', e por isso Mario Terán vai deslocar-se com vagar até à sala de aula abandonada onde o líder dos prisioneiros está, ainda vivo, amontoado junto aos cadáveres dos seus companheiros.
 
E na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emergirá lentamente da selva esparsa, e o dia estará quente, quente. Este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo que pode detectar presas feridas a milhas de distância, terá, no dia nove de Outubro, os seus olhos postos num pequeno turista alemão com óculos.
 
Mario Terán vai percorrer a terra batida, calcinada, até à sala de aula. Mario Terán terá ordens. A luminosidade em La Higuera vai ser tão intensa que ao entrar naquele pequeno edifício destroçado Mario Terán não conseguirá distinguir nada das sombras. A silhueta de Mario Terán vai aparecer à entrada e um pequeno movimento num dos cantos da sala vai chamar a atenção de Mario Terán.
 
Mario Terán vai sentir o cheiro fétido dos cadáveres apodrecidos debaixo do calor de La Higuera. Os olhos de Mario Terán vão chorar, mas sem qualquer ponta de sentimento. Nesse momento os pensamentos de Mario Terán vão estar no preço das suas botas, na ausência de mulheres na sua vida, numa canção que a mãe lhe cantava quando era pequeno. Mario Terán vai ver os olhos brilhantes do líder dos prisioneiros, os olhos tresloucados, alterados pelo medo, pelo desejo de glória. O líder dos prisioneiros vai falar: 'Sé que has venido a matarme. Dispara, cobarde, sólo vas a matar un hombre'. O chefe dos prisioneiros vai rosnar estas palavras e Mario Terán não vai pensar em nada. Mario Terán vai olhar apenas para os olhos de cão encurralado do líder dos prisioneiros. Mario Terán vai disparar uma, duas, três, quatro vezes.
 
Isto é o que Mario Terán vai ver no momento em que dispara: ele é pequeno outra vez e corre com o seu irmão mais velho pelos campos devassados de calor, perseguindo cobras. Ele é pequeno e a sua mãe espera pelos dois numa pequena casa fora de tudo, e ele e o irmão trazem duas cobras mortas e a mãe ri-se, fica ligeiramente chateada. O pai vai chegar a casa e a pele das cobras vai-lhe ser oferecida. Marito vai adormecer sem dificuldade, e vai sonhar que um dia há uma cobra que ele não pode matar.
Isto é o que Mario Terán vai ver no momento em que dispara: é 2004 e ele emerge de uma caravana em Miami, onde vive desde aquele nove de Outubro. É 2004 e tem uma filha com o síndroma de Down. As raparigas de Miami andam nas ruas em biquini, acelerando em patins. Mario Terán vai olhar para a esposa deformada ao seu lado na cama, vai ter pena da sua filha, vai perguntar-se pelo filho mais velho que nunca mais voltou para casa.
 
Isto é o que acontece ao corpo do líder dos prisioneiros no momento em que Mario Terán dispara: a primeira bala perfura-lhe o baixo ventre, não causando imediatamente a morte mas provocando uma dor aguda, penetrante, na zona do apêndice. A segunda bala é fatal: entra pelo tórax e fura o pulmão direito - o organismo entra em colapso e o sangue dos pulmões inunda a caixa toráxica. O líder dos prisioneiros já não viverá para sentir a terceira e quarta balas, que entram respectivamente junto à jugular e em cheio no diafragma.
Isto é o que o líder dos prisioneiros vai pensar no momento em que Mario Terán dispara: então é isto. Então a morte é isto.
 
Mario Terán vai lembrar-se outra vez que está bêbado. Vai olhar sem pena para o corpo de Ernesto "Che" Guevara, um corpo igual aos cadáveres dos companheiros que ao seu lado apodrecem. Mario Terán vai achar que não é justo que Guevara o tenha chamado de cobarde.
 
Mario Terán vai emergir da sala de aula onde o cheiro dos corpos atrai legiões de insectos. Mario Terán vai olhar ao longe as nuvens de abutres que se aproximam: milhares e milhares de abutres, abutres sem fim que escurecem o céu. Mario Terán vai encolher os ombros e virar as costas aos abutres. Afinal: haverá ainda tanto por fazer! Cortar as mãos ao cadáver de Guevara, enviar as mãos para a Argentina, entregar o cadáver de Guevara às freiras, lavá-lo, pentear os cabelos e aquela barba que tantas mulheres atraiu. Enfim, expôr o corpo de Guevara aos fotógrafos, imprimir umas T-shirts, torná-lo no novo Jesus Cristo.
 
Mario Terán vai achar que não é justo que Guevara o tenha chamado de cobarde. Mas ele vai encolher os ombros, poisar a espingarda no chão, coçar o ânus, levar os dedos ao nariz, cheirar levemente.
 


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