Fotografias de mim
Na rua em frente de mim dezenas de crianças tentam chamar a atenção dos pais que olham para o mar, para o mar que cresce, e as crianças puxam as mangas dos pais e só querem ser felizes, a sua vida está mesmo agora a começar, e a banda filarmónica começa a tocar de novo 'A Whiter Shade of Pale' mas desta vez alguém acompanha a música assobiando muito perto de mim - e depressa o assobio deixa de acompanhar e muda gradualmente para algo que se parece o 'Imagine' e eu estou a olhar para raparigas demasiado bêbadas, demasiado novas, estou a pensar que aquela história da separação entre o Ben Affleck e a Jennifer Lopez nunca chegou a ser bem explicada. Esta fotografia é tirada de fora, junto à zona de rebentação na praia negra, coberta de pedras, e a lente faz zoom até à minha cara e eu estou a morder levemente a língua. Barulho de crianças lentamente desliza para choro desapontado de crianças. Crianças sentem pontadas de solidão e eu mordo a minha língua, fazendo-a deslizar entre as linhas dos dentes, e atrás de mim arroz branco cozinha-se sozinho, e eu vou comê-lo numa malga com pauzinhos, sentado no chão do meu quarto. Estou em pé, encostado junto à enorme janela que dá para o mar. Estou a tomar uma decisão.
'Colony' de Joy Division nos meus auscultadores e eu estou sentado no meio de um relvado, e o sol cai em cima de mim e eu fecho os olhos e viro a minha cara para o sol, e do meu cotovelo escorre sangue e eu não gosto lá muito de Joy Division. Não penso em nada de especial, penso no jogo de futebol que acabei de jogar, penso no cotovelo que sangra, penso em deixar o sol entrar dentro de mim, esse tipo de coisas. À minha frente Panticelyn, o sítio onde te dão pontapés na porta todas as noites se não falares galês. Alguém com uma pressão de ar passa e eu dou por mim a pensar em esquilos, depois em ratazanas do tamanho de vacas deslizando lentamente em relvados como este em que estou sentado. O fotógrafo, indeciso sobre o plano, vai dando círculos em redor de mim mas eu não o vejo porque tenho a cabeça inclinada para trás e o sol entra pelos meus poros e no final a fotografia é tirada de longe, apanhando uma parte da fachada de Panticelyn e alguém com uma pressão de ar atrás de uma árvore a fazer de conta que vai disparar sobre mim.
No cemitério de crianças eu sento-me num banco num dia cinzento e como batatas fritas de um saco de papel, e já estou farto de ler inscrições em tumbas e penso nos Smiths. As gaivotas decidiram subitamente que algo está errado e estão a voar todas em direcção a um sítio qualquer, alguém passeia um cão, alguém procura algo no cemitério, e algumas tumbas foram danificadas na construção de um parque de estacionamento da paróquia e eu estou a pensar que isso não está certo. De onde eu estou vejo o memorial aos mortos da Grande Guerra, depois um galgo triste a arrastar a coleira, depois a namorada de um amigo que passeia junto ao mar talvez farta de viver com ele, e passa-me pela cabeça que o Brad Pitt deve ser uma boa pessoa porque gosta de Nick Drake. Esta foto é simples. O fotógrafo diz-me em surdina 'just act cool' e apanha-me num plano frontal sentado num banco cercado de tumbas, e eu estou a lutar com o saco de batatas fritas, talvez esforçando-me demasiado enquanto um fio de óleo escorre lentamente de um dos cantos da minha boca.
Depois de uma caminhada de meia hora pelas rochas cobertas de algas que a maré baixa revelou, eu estou parado a ver uma pequena colónia de gaivotas, os meus pés enterrados na areia, o mar à minha frente pulsando sobre as rochas em pequenas ondas que são como afagos. Cercado de falésias e pedras eu oiço Red House Painters, ou então oiço Sun Kil Moon, ou talvez seja Bruce Springsteen ou mesmo Sigur Rós. Algumas gaivotas foram destacadas para me vigiar e proteger a colónia, elas espreitam-me do topo das ravinas nesta praia pequena, escondida, secreta, e há grutas por todo o lado e por momentos esta praia é minha e eu sou desta praia. Penso que se partir a perna por aqui morro, depois um casal de pescadores passa, verificando com pequenas redes as poças que a maré baixa deixou. Estão em busca daquelas coisas que os pescadores buscam. Para esta cena o fotógrafo opta por um grande plano da minha cara: ele aproxima-se e eu estou a sentir o espírito desta praia a entrar em mim, talvez os fantasmas que aqui se afogaram, e eu estou a sorrir porque estou feliz. Para a posteridade fica exactamente este meu sorriso, e os meus olhos fechados, e as paredes de rocha à minha volta, tudo cinzento, tudo pardo. E a fotografia apanha ainda uma gaivota que se precipita para talvez me arrancar o nariz, mas no último momento ela reconsidera e voa para longe e a impressão que dá ao observador desta foto é que a gaivota se está a debruçar sobre mim para me beijar a face.
Sentado no meu quarto e acabei de escrever um post sobre os meus tempos do basquetebol no Fundão. Está escuro e este post deixou-me com saudades de todos aqueles amigos que eu abandonei - estou sentado em frente à janela abraçando os meus joelhos, penso neles e no terror que me levou a fugir, penso que 'Jesus to a Child' de George Michael é uma música lindíssima. E uma bola quente, peluda, negra começa a crescer no meu peito e eu não sei dizer se é tristeza ou alegria porque ao ouvir aquela música tão bonita eu estou a sorrir e a sentir saudades. Olho para a minha rua vazia à noite, sinto-me longe. Esta é uma sequência de fotografias e a equipa necessitou de alugar um helicóptero para a efectuar, ele começa a pairar junto à minha janela e vai-se afastando, eu sentado sem me mexer e a casa a ficar mais e mais pequena, o telhado e as gaivotas a voar em volta ficam em algumas das fotografias e é tudo muito intenso e o George Michael encaminha a música para o fim.
E na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emerge lentamente da selva esparsa, e o dia está quente, quente, e os dragões do Komodo chegam a ter um tamanho de três metros e correm com a velocidade de um cão (embora em pequenas distâncias). Os dentes deste dragão assemelham-se aos dos tubarões, e ele tem tantas bactérias na boca que, apesar de a sua saliva não ser venenosa, uma mordedura pode tornar-se fatal. As suas garras são, igualmente, temíveis, e este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo que pode detectar presas feridas a milhas de distância, tem os seus olhos postos num pequeno turista alemão com óculos.
Outra fotografia: mais um fim de dia neste verão cinzento e as minhas roupas estão amontoadas descuidadamente sobre as pedras negras da praia. Duas ou três gaivotas voam à minha volta, protegendo as crias que nadam de forma patusca a alguns metros de mim. A praia é só minha, minha, e eu flutuo apenas, os braços abertos, e começa a chover e quando eu me deixo deslizar para debaixo de água vejo as patitas das gaivotas-bébé a dar e dar, vejo as gotas de chuva a bater com alguma força na superfície. Não me perguntem como mas estou a ouvir 'Gentle Moon', da nova banda de Mark Kozelek. Quando volto à superfície a chuva é mais intensa e eu estou nu, e água com sal escorre-me pela cara e eu estou nu, e não me perguntem como mas desta vez sou eu que tenho a máquina fotográfica nas mãos. Gaivotas voando à minha volta parecem compreender o que está prestes a acontecer e afastam-se, e quando eu olho para a margem para além da cortina de chuva vejo algo que nunca vi, vejo algo estranhamente familiar. Uma presença cujos contornos são indefinidos, e essa presença está junto às roupas que deixei na margem. Suspiro, bebo gotas de água com sal: um anjo está junto à água em que estou.
'Colony' de Joy Division nos meus auscultadores e eu estou sentado no meio de um relvado, e o sol cai em cima de mim e eu fecho os olhos e viro a minha cara para o sol, e do meu cotovelo escorre sangue e eu não gosto lá muito de Joy Division. Não penso em nada de especial, penso no jogo de futebol que acabei de jogar, penso no cotovelo que sangra, penso em deixar o sol entrar dentro de mim, esse tipo de coisas. À minha frente Panticelyn, o sítio onde te dão pontapés na porta todas as noites se não falares galês. Alguém com uma pressão de ar passa e eu dou por mim a pensar em esquilos, depois em ratazanas do tamanho de vacas deslizando lentamente em relvados como este em que estou sentado. O fotógrafo, indeciso sobre o plano, vai dando círculos em redor de mim mas eu não o vejo porque tenho a cabeça inclinada para trás e o sol entra pelos meus poros e no final a fotografia é tirada de longe, apanhando uma parte da fachada de Panticelyn e alguém com uma pressão de ar atrás de uma árvore a fazer de conta que vai disparar sobre mim.
No cemitério de crianças eu sento-me num banco num dia cinzento e como batatas fritas de um saco de papel, e já estou farto de ler inscrições em tumbas e penso nos Smiths. As gaivotas decidiram subitamente que algo está errado e estão a voar todas em direcção a um sítio qualquer, alguém passeia um cão, alguém procura algo no cemitério, e algumas tumbas foram danificadas na construção de um parque de estacionamento da paróquia e eu estou a pensar que isso não está certo. De onde eu estou vejo o memorial aos mortos da Grande Guerra, depois um galgo triste a arrastar a coleira, depois a namorada de um amigo que passeia junto ao mar talvez farta de viver com ele, e passa-me pela cabeça que o Brad Pitt deve ser uma boa pessoa porque gosta de Nick Drake. Esta foto é simples. O fotógrafo diz-me em surdina 'just act cool' e apanha-me num plano frontal sentado num banco cercado de tumbas, e eu estou a lutar com o saco de batatas fritas, talvez esforçando-me demasiado enquanto um fio de óleo escorre lentamente de um dos cantos da minha boca.
Depois de uma caminhada de meia hora pelas rochas cobertas de algas que a maré baixa revelou, eu estou parado a ver uma pequena colónia de gaivotas, os meus pés enterrados na areia, o mar à minha frente pulsando sobre as rochas em pequenas ondas que são como afagos. Cercado de falésias e pedras eu oiço Red House Painters, ou então oiço Sun Kil Moon, ou talvez seja Bruce Springsteen ou mesmo Sigur Rós. Algumas gaivotas foram destacadas para me vigiar e proteger a colónia, elas espreitam-me do topo das ravinas nesta praia pequena, escondida, secreta, e há grutas por todo o lado e por momentos esta praia é minha e eu sou desta praia. Penso que se partir a perna por aqui morro, depois um casal de pescadores passa, verificando com pequenas redes as poças que a maré baixa deixou. Estão em busca daquelas coisas que os pescadores buscam. Para esta cena o fotógrafo opta por um grande plano da minha cara: ele aproxima-se e eu estou a sentir o espírito desta praia a entrar em mim, talvez os fantasmas que aqui se afogaram, e eu estou a sorrir porque estou feliz. Para a posteridade fica exactamente este meu sorriso, e os meus olhos fechados, e as paredes de rocha à minha volta, tudo cinzento, tudo pardo. E a fotografia apanha ainda uma gaivota que se precipita para talvez me arrancar o nariz, mas no último momento ela reconsidera e voa para longe e a impressão que dá ao observador desta foto é que a gaivota se está a debruçar sobre mim para me beijar a face.
Sentado no meu quarto e acabei de escrever um post sobre os meus tempos do basquetebol no Fundão. Está escuro e este post deixou-me com saudades de todos aqueles amigos que eu abandonei - estou sentado em frente à janela abraçando os meus joelhos, penso neles e no terror que me levou a fugir, penso que 'Jesus to a Child' de George Michael é uma música lindíssima. E uma bola quente, peluda, negra começa a crescer no meu peito e eu não sei dizer se é tristeza ou alegria porque ao ouvir aquela música tão bonita eu estou a sorrir e a sentir saudades. Olho para a minha rua vazia à noite, sinto-me longe. Esta é uma sequência de fotografias e a equipa necessitou de alugar um helicóptero para a efectuar, ele começa a pairar junto à minha janela e vai-se afastando, eu sentado sem me mexer e a casa a ficar mais e mais pequena, o telhado e as gaivotas a voar em volta ficam em algumas das fotografias e é tudo muito intenso e o George Michael encaminha a música para o fim.
E na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emerge lentamente da selva esparsa, e o dia está quente, quente, e os dragões do Komodo chegam a ter um tamanho de três metros e correm com a velocidade de um cão (embora em pequenas distâncias). Os dentes deste dragão assemelham-se aos dos tubarões, e ele tem tantas bactérias na boca que, apesar de a sua saliva não ser venenosa, uma mordedura pode tornar-se fatal. As suas garras são, igualmente, temíveis, e este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo que pode detectar presas feridas a milhas de distância, tem os seus olhos postos num pequeno turista alemão com óculos.
Outra fotografia: mais um fim de dia neste verão cinzento e as minhas roupas estão amontoadas descuidadamente sobre as pedras negras da praia. Duas ou três gaivotas voam à minha volta, protegendo as crias que nadam de forma patusca a alguns metros de mim. A praia é só minha, minha, e eu flutuo apenas, os braços abertos, e começa a chover e quando eu me deixo deslizar para debaixo de água vejo as patitas das gaivotas-bébé a dar e dar, vejo as gotas de chuva a bater com alguma força na superfície. Não me perguntem como mas estou a ouvir 'Gentle Moon', da nova banda de Mark Kozelek. Quando volto à superfície a chuva é mais intensa e eu estou nu, e água com sal escorre-me pela cara e eu estou nu, e não me perguntem como mas desta vez sou eu que tenho a máquina fotográfica nas mãos. Gaivotas voando à minha volta parecem compreender o que está prestes a acontecer e afastam-se, e quando eu olho para a margem para além da cortina de chuva vejo algo que nunca vi, vejo algo estranhamente familiar. Uma presença cujos contornos são indefinidos, e essa presença está junto às roupas que deixei na margem. Suspiro, bebo gotas de água com sal: um anjo está junto à água em que estou.
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