Quando eu era jogadora de futebol
Durante anos eu fui a municiadora de jogo da equipa feminina do Clube Académico das Gândaras. Digo municiadora porque a minha função era transportar a bola para as minhas colegas do ataque. Desempenhava a função do número 10, embora a minha camisola não fosse a 10 mas sim a nº8 porque quando era miúda gostava de ver o João Pinto no Benfica e ele era o número 8 e assim ficou. Para o meu treinador eu era simplesmente "o armador de jogo". Ele dizia assim:
- Tem a bola, levanta a cabeça. Mete no armador de jogo e desmarca...
E por aí fora. De igual modo, no jogo as minhas colegas eram sempre tratadas como jogadores profissionais HOMENS:
- Olha a banda direita, f***-**! Mete no lateral direito!
O lateral direito era a Perlita, uma miúda pequenina e rápida, recrutada aos júniores depois de a Susana deslocar a anca e engravidar pouco depois (algumas pessoas diziam que ela deslocou a anca ao engravidar). A Perlita chamava-se na verdade Ester, mas os seus avós eram de Olivença e chamavam-lhe Perlita e assim ficou.
O treinador era conhecido por Freixo. A mim ele dizia-me para o tratar por Jorge, mas só quando não estava ninguém a ouvir. O Freixo passava a vida no campo do Gândaras e no Polidesportivo. Via os jogos todos do hóquei, era director desportivo dos infantis e dos iniciados no basquetebol, treinava a nossa equipa e ainda organizava os torneios de sueca e de futsal. Era ainda novo (vinte e tal anos acho), era órfão e tinha o cabelo encaracolado, com gel. Houve uma altura em que andava sempre com um boné roxo, que atirava ao chão e amarfanhava quando nós falhávamos uma das suas "jogadas combinadas".
O sonho do Freixo era treinar a equipa profissional da Lousã. Ele gritava para dentro do campo:
- Olha o avançado sozinho! Centra pró avançado!
O avançado era a Tuxa.
E o Freixo não via as raparigas. Via-me a mim e via os jogadores do Lousã (Tarzan, Sampaio, Luís Moita, Dominique...). E depois via os jogos da Primeira Divisão na televisão, sentado num canto do Snack do Índio, a tomar notas. Os presentes punham-se a mangar com ele, mas ele não se importava. Andava na tele-escola, a aprender com o Manuel Cajuda, o António Oliveira, o Fernando Santos, o Toni, todos esses doutores da bola!
Na época 98/99, marquei dez golos (quatro de penalti), fiz mais de quinze assistências, recebi oito cartões amarelos e um vermelho por acumulação, fui capitã de equipa e titular a época inteira. No último jogo da época, quando assegurámos a manutenção, o Freixo abraçou-se a mim a chorar e disse-me que eu era a melhor coisa que lhe tinha acontecido.
Os espiões descobriram-me já tarde, e tinha 19 anos quando fui para Lisboa com um contrato de duas épocas com a equipa feminina do Belenenses. O primeiro ano correu mal e não me adaptei, e apesar de me desculpar perante a família com umas dores nos gémeos, a verdade é que estava demasiado assustada para me conseguir concentrar. Fui ainda emprestada uns meses ao Oriental, para rodar, mas no final da época voltei às Gândaras. E lá permaneci.
Nos intervalos das partidas, todas suadas nos balneários, ouvíamos a palestra do Freixo:
- Não acredito que não saibam levantar a cabeça quando têm a bola. Levanta a cabeça, mete no colega. Os dois laterais estão sempre sozinhos, f***-**! Se tem medo de perder a bola, atrasa. Ou então mete no armador de jogo.
E depois para mim, com um tom algo acabrunhado na voz:
- Marina, é preciso abrir o livro! Se não abres o livro, não saímos da cepa torta. Força a falta se vires que não tens hipótese.
E por aí adiante. Em Lisboa, às segundas-feiras (dia de folga), eu gostava de ir comer gelados e ver os patos ao Jardim da Estrela. Ou então ia às Amoreiras com a minha colega. Ou então passeávamos na Praça de Londres. Quando voltei às Gândaras o prazo de inscrições já tinha passado e não pude entrar na equipa. Deixei de jogar futebol e dois meses depois arranjei um emprego nas confecções.
Comecei a namorar com o Mário nesse ano, casámo-nos mas ainda não temos filhos. Andamos a tentar. Quando é dia de receber na fábrica do Mário eu vou com as outras mulheres e juntamo-nos à porta, à hora de almoço, e quando eles saem vamos logo depositar os cheques na Caixa. O Mário às vezes exagera um pouco na bebida, mas somos felizes.
- Tem a bola, levanta a cabeça. Mete no armador de jogo e desmarca...
E por aí fora. De igual modo, no jogo as minhas colegas eram sempre tratadas como jogadores profissionais HOMENS:
- Olha a banda direita, f***-**! Mete no lateral direito!
O lateral direito era a Perlita, uma miúda pequenina e rápida, recrutada aos júniores depois de a Susana deslocar a anca e engravidar pouco depois (algumas pessoas diziam que ela deslocou a anca ao engravidar). A Perlita chamava-se na verdade Ester, mas os seus avós eram de Olivença e chamavam-lhe Perlita e assim ficou.
O treinador era conhecido por Freixo. A mim ele dizia-me para o tratar por Jorge, mas só quando não estava ninguém a ouvir. O Freixo passava a vida no campo do Gândaras e no Polidesportivo. Via os jogos todos do hóquei, era director desportivo dos infantis e dos iniciados no basquetebol, treinava a nossa equipa e ainda organizava os torneios de sueca e de futsal. Era ainda novo (vinte e tal anos acho), era órfão e tinha o cabelo encaracolado, com gel. Houve uma altura em que andava sempre com um boné roxo, que atirava ao chão e amarfanhava quando nós falhávamos uma das suas "jogadas combinadas".
O sonho do Freixo era treinar a equipa profissional da Lousã. Ele gritava para dentro do campo:
- Olha o avançado sozinho! Centra pró avançado!
O avançado era a Tuxa.
E o Freixo não via as raparigas. Via-me a mim e via os jogadores do Lousã (Tarzan, Sampaio, Luís Moita, Dominique...). E depois via os jogos da Primeira Divisão na televisão, sentado num canto do Snack do Índio, a tomar notas. Os presentes punham-se a mangar com ele, mas ele não se importava. Andava na tele-escola, a aprender com o Manuel Cajuda, o António Oliveira, o Fernando Santos, o Toni, todos esses doutores da bola!
Na época 98/99, marquei dez golos (quatro de penalti), fiz mais de quinze assistências, recebi oito cartões amarelos e um vermelho por acumulação, fui capitã de equipa e titular a época inteira. No último jogo da época, quando assegurámos a manutenção, o Freixo abraçou-se a mim a chorar e disse-me que eu era a melhor coisa que lhe tinha acontecido.
Os espiões descobriram-me já tarde, e tinha 19 anos quando fui para Lisboa com um contrato de duas épocas com a equipa feminina do Belenenses. O primeiro ano correu mal e não me adaptei, e apesar de me desculpar perante a família com umas dores nos gémeos, a verdade é que estava demasiado assustada para me conseguir concentrar. Fui ainda emprestada uns meses ao Oriental, para rodar, mas no final da época voltei às Gândaras. E lá permaneci.
Nos intervalos das partidas, todas suadas nos balneários, ouvíamos a palestra do Freixo:
- Não acredito que não saibam levantar a cabeça quando têm a bola. Levanta a cabeça, mete no colega. Os dois laterais estão sempre sozinhos, f***-**! Se tem medo de perder a bola, atrasa. Ou então mete no armador de jogo.
E depois para mim, com um tom algo acabrunhado na voz:
- Marina, é preciso abrir o livro! Se não abres o livro, não saímos da cepa torta. Força a falta se vires que não tens hipótese.
E por aí adiante. Em Lisboa, às segundas-feiras (dia de folga), eu gostava de ir comer gelados e ver os patos ao Jardim da Estrela. Ou então ia às Amoreiras com a minha colega. Ou então passeávamos na Praça de Londres. Quando voltei às Gândaras o prazo de inscrições já tinha passado e não pude entrar na equipa. Deixei de jogar futebol e dois meses depois arranjei um emprego nas confecções.
Comecei a namorar com o Mário nesse ano, casámo-nos mas ainda não temos filhos. Andamos a tentar. Quando é dia de receber na fábrica do Mário eu vou com as outras mulheres e juntamo-nos à porta, à hora de almoço, e quando eles saem vamos logo depositar os cheques na Caixa. O Mário às vezes exagera um pouco na bebida, mas somos felizes.
Marina Lopes Rodrigues (Gândaras)
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