Onze de trinta e três
Para alguém, em algum lado, estas coisas vão importar – à medida que as casas arrefecem ao luar e eu regresso lentamente às minhas paisagens habituais. Estávamos em meados dos anos 80 e éramos punks rafeiros em Madrid. Adorávamos sarilhos, e os sarilhos adoravam-nos: éramos bissexuais, animais, doentes – andávamos às voltas pelo Instituto, desperdiçados nas companhias erradas, beijando os lábios fedorentos das raparigas de Pitis, de Peñagrande, do Barrio del Pilar.
Agora tenho casacos de malha, sessões de terapia, certezas e um número fiscal – a mãe dos meus filhos descasa-se e descose-se, e eu deslizo lentamente para as minhas pastagens habituais. Um Quaalude comprado na Internet e depositado docemente debaixo da língua, como um limão se eu tivesse mandíbulas de hipopótamo.
E descubro então a coisa mais espantosa: descubro que o meu coração é espanhol, que o meu coração é punk rafeiro, é Ramones vertidos para castelhano, é esperar à saída do Colegio Montfort e corrê-los todos a hóstias. Posso aparentar a placidez e a hesitação de um puro sangue da minha terra, mas a verdade é que o meu coração é espanhol, e o ar que respiro tem vogais fortes, e os meus sonhos são de Badajoz, de Pinar de Antequera, ajoelham-se na terra, chegam a Teruel tornados delírio – rápidos, de mil mães choradeiras, amargamente. Eles que bordam com paciência.
Foi o meu corpo que fez esta escolha: onde estão as lágrimas, onde está o sangue, onde estão os campanários perdidos, os crucificados de Castilla-La Mancha, as vozes entrecortadas das raparigas espanholas e as tardes cálidas nos entroncamentos? Onde estão os ateliês, os bares sem pena, as virgens emancipadas? Onde está a falta de descanso, os olhos com o coração às costas, o querer inevitável, impetuoso, a suave organização e a despedida efusiva? Aconteça o que acontecer, é aí que eu andarei sempre à procura.
Meu amor secreto: eu quero apenas dizer que nunca me fui embora. Estou aqui, no mesmo sítio, e as histórias da minha avó ainda hoje me arrancam tiras inteiras de pele das costas. E foi contigo que me fiz homem, contigo que saí de casa pela primeira vez. Tornei-me um poeta medíocre, daqueles que não cantam e não choram. Tornei-me numa daquelas pessoas que pensam que já viram tudo, e que por isso não vislumbram um palmo à frente do nariz. Vivo numa casa debaixo da ponte, e acordo muitas vezes a meio da noite com o calor da Andaluzia na fronte, aqueles dedos morenos na nuca – os lábios ciganos no peito.
Querida mãe, mãe da meseta, mãe do sol, eu devia morrer a tentar perceber-te, a morder os teus passeios. Eu devia ter chegado aí ontem – o sítio onde pertenço.
Agora tenho casacos de malha, sessões de terapia, certezas e um número fiscal – a mãe dos meus filhos descasa-se e descose-se, e eu deslizo lentamente para as minhas pastagens habituais. Um Quaalude comprado na Internet e depositado docemente debaixo da língua, como um limão se eu tivesse mandíbulas de hipopótamo.
E descubro então a coisa mais espantosa: descubro que o meu coração é espanhol, que o meu coração é punk rafeiro, é Ramones vertidos para castelhano, é esperar à saída do Colegio Montfort e corrê-los todos a hóstias. Posso aparentar a placidez e a hesitação de um puro sangue da minha terra, mas a verdade é que o meu coração é espanhol, e o ar que respiro tem vogais fortes, e os meus sonhos são de Badajoz, de Pinar de Antequera, ajoelham-se na terra, chegam a Teruel tornados delírio – rápidos, de mil mães choradeiras, amargamente. Eles que bordam com paciência.
Foi o meu corpo que fez esta escolha: onde estão as lágrimas, onde está o sangue, onde estão os campanários perdidos, os crucificados de Castilla-La Mancha, as vozes entrecortadas das raparigas espanholas e as tardes cálidas nos entroncamentos? Onde estão os ateliês, os bares sem pena, as virgens emancipadas? Onde está a falta de descanso, os olhos com o coração às costas, o querer inevitável, impetuoso, a suave organização e a despedida efusiva? Aconteça o que acontecer, é aí que eu andarei sempre à procura.
Meu amor secreto: eu quero apenas dizer que nunca me fui embora. Estou aqui, no mesmo sítio, e as histórias da minha avó ainda hoje me arrancam tiras inteiras de pele das costas. E foi contigo que me fiz homem, contigo que saí de casa pela primeira vez. Tornei-me um poeta medíocre, daqueles que não cantam e não choram. Tornei-me numa daquelas pessoas que pensam que já viram tudo, e que por isso não vislumbram um palmo à frente do nariz. Vivo numa casa debaixo da ponte, e acordo muitas vezes a meio da noite com o calor da Andaluzia na fronte, aqueles dedos morenos na nuca – os lábios ciganos no peito.
Querida mãe, mãe da meseta, mãe do sol, eu devia morrer a tentar perceber-te, a morder os teus passeios. Eu devia ter chegado aí ontem – o sítio onde pertenço.
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