Panticosa
Durante semanas, vivi numa aldeia nos Pirinéus espanhóis. Tínhamos chegado pelo sul de França, após evitarmos Toulouse-a-cidade-do-mármore devido à chuva e ao cansaço. Eu tinha levado uma mala de livros, tinha planos de escrever uma novela, ler regularmente o jornal local. Trazia comigo, entre outros, os dois volumes do 'De la Démocratie en Amérique', de Alexis de Tocqueville (ed. GF-Flammarion).
A aldeia ficava no sopé de um monte onde se situava a estância de esqui, e apesar de ser Verão havia um teleférico em funcionamento, por isso eu subia quase todas as manhãs e observava as aulas de iniciação ao esqui num terreiro de neve artificial, alimentado constantemente por uma máquina ruidosa que cuspia flocos gelados e vento. Tratava-se de aulas para crianças, filhos da classe média-alta de Saragoça e Pamplona, vestidos a preceito com anoraques de cores fortes e óculos escuros nas caras besuntadas de protector solar - e eu observava essas crianças e bebia Coca-colas e dava voltas pelo monte, uma paisagem que começava a conhecer.
Lia durante a tarde. Dormia sestas na varanda, estendido numa cadeira de praia, debaixo do sol fraco. Comia queijo e bolachas de água e sal. Depois de jantar ficava subitamente frio e muitas vezes eu acabava a noite na discoteca local, um sítio onde irrompiam sucessivas brigas, onde alguém sempre desatava a chorar, onde as raparigas locais e as da cidade se mediam, onde, diariamente, e sem surpresas de maior, os adolescentes representavam os seus dramas.
Fiz amizade com um rapaz de Pamplona que esperava a chegada dos pais enquanto, supostamente, estudava para os exames de Setembro. Éramos quase vizinhos. Uma vez fui com ele e com os seus amigos até aos poços naturais situados no ribeiro junto à aldeia, e onde consegui chegar sem mazelas graças às indicações precisas dos meus companheiros - que pé colocar e onde, a que reentrâncias da rocha me agarrar, de que maneira transferir o peso do corpo por forma a escapar à água turbilhonando em baixo - o que me fez sentir como um autómato, feliz porque seguro, porque estranhamente confiante nos que me rodeavam.
Depois os saltos: os voos de três, quatro metros, nas zonas negras das piscinas - a água gelada, as sapatilhas velhas do meu amigo subitamente familiares, as arestas arranhando os pés molhados, as pequenas pedrinhas cravadas na pele.
Nesse dia, já de volta a casa, enquanto tentava conciliar o lanche com a leitura de um jornaleco da zona francesa dos Pirinéus, fiz uma profunda ferida num dedo, ao cortar queijo. Olhei o dedo ferido com uma certa estranheza durante algum tempo. Depois, comi o queijo empapado no sangue, o que deixou o seu sabor por demasiado tempo nas minhas gengivas. Era altura de regressar.
A aldeia ficava no sopé de um monte onde se situava a estância de esqui, e apesar de ser Verão havia um teleférico em funcionamento, por isso eu subia quase todas as manhãs e observava as aulas de iniciação ao esqui num terreiro de neve artificial, alimentado constantemente por uma máquina ruidosa que cuspia flocos gelados e vento. Tratava-se de aulas para crianças, filhos da classe média-alta de Saragoça e Pamplona, vestidos a preceito com anoraques de cores fortes e óculos escuros nas caras besuntadas de protector solar - e eu observava essas crianças e bebia Coca-colas e dava voltas pelo monte, uma paisagem que começava a conhecer.
Lia durante a tarde. Dormia sestas na varanda, estendido numa cadeira de praia, debaixo do sol fraco. Comia queijo e bolachas de água e sal. Depois de jantar ficava subitamente frio e muitas vezes eu acabava a noite na discoteca local, um sítio onde irrompiam sucessivas brigas, onde alguém sempre desatava a chorar, onde as raparigas locais e as da cidade se mediam, onde, diariamente, e sem surpresas de maior, os adolescentes representavam os seus dramas.
Fiz amizade com um rapaz de Pamplona que esperava a chegada dos pais enquanto, supostamente, estudava para os exames de Setembro. Éramos quase vizinhos. Uma vez fui com ele e com os seus amigos até aos poços naturais situados no ribeiro junto à aldeia, e onde consegui chegar sem mazelas graças às indicações precisas dos meus companheiros - que pé colocar e onde, a que reentrâncias da rocha me agarrar, de que maneira transferir o peso do corpo por forma a escapar à água turbilhonando em baixo - o que me fez sentir como um autómato, feliz porque seguro, porque estranhamente confiante nos que me rodeavam.
Depois os saltos: os voos de três, quatro metros, nas zonas negras das piscinas - a água gelada, as sapatilhas velhas do meu amigo subitamente familiares, as arestas arranhando os pés molhados, as pequenas pedrinhas cravadas na pele.
Nesse dia, já de volta a casa, enquanto tentava conciliar o lanche com a leitura de um jornaleco da zona francesa dos Pirinéus, fiz uma profunda ferida num dedo, ao cortar queijo. Olhei o dedo ferido com uma certa estranheza durante algum tempo. Depois, comi o queijo empapado no sangue, o que deixou o seu sabor por demasiado tempo nas minhas gengivas. Era altura de regressar.
<< Home