I see dead people
Nas ruas desertas da Bica à noite, quando todos dormem e ainda ninguém se levantou, está um rapaz parado numa esquina a ouvir o silêncio e a água que escorre pelas ruas abaixo, e as suas roupas estão rasgadas em alguns sítios porque eram demasiado apertadas e ele mexeu-se muito rápido para fugir - e o seu eyeliner está incerto em alguns sítios e talvez desbotado pelo suor, pelas lágrimas, e nas ruas escorregadias da Bica à noite ele escuta com atenção, agarra-se às paredes, os seus caracóis manchados de cal - não vão os namorados voltar.
E naquelas ruas escuras que bordejam S. Bento, onde à noite ninguém se dá ao trabalho de ir a não ser para vomitar, um rapaz corre e olha por cima dos ombros, tropeçando, e tudo o que ouve é a sua respiração, o seu terror, e as suas calças de licra apertam de forma intensa o saco escrotal à medida que este rapaz perde as energias, perde a calma - e ele esconde-se junto a uns andaimes que impedem casas de cair e chora baixinho, e olha para todos os lados (não vão os namorados voltar), e pensa na sua mãe, e pergunta-se onde é que tudo correu mal, e na sua mala preservativos bâton e metade de um telemóvel, uma pistola de água.
E no Bairro Alto, também à noite, quando alguns adolescentes crescem e outros se embebedam e tantos tantos descobrem o amor e o que o amor custa, um rapaz rodeado de homens é empurrado de um lado para o outro, é abraçado e beijado e manuseado e ninguém se importa com o que lhe acontece, e depois este rapaz vai para apartamentos e sai desses apartamentos de manhã e o dinheiro continua a aparecer não se sabe de onde, e se apenas Lisboa soubesse isto tudo, e se apenas os amigos deste rapaz soubessem - e no Príncipe Real este rapaz gira, embriagado, sorridente, acompanhado das namoradas dos namorados, e ele é uma mascote e elas esbofeteiam-no nos pátios e todos se riem, e todos são o máximo, e todos têm sonhos que os fazem cair da cama, e nas malas preservativos bâtons destroços de telemóvel, confettis, pistolas de água, instruções para fazer bombas caseiras.
E as namoradas dos namorados são as mais cruéis de todas, elas dizem fode-o fode-o, e riem-se nuas, pedradas na cama, e os namorados excitados agarram no pénis e perguntam ao rapaz queres que te foda com isto? e ele diz sim fode-me, e põe-se de gatas na cama e fecha os olhos e espera e as namoradas gritam fode-o fode-o, e vêm-se antes de toda a gente, e puxam os cabelos do rapaz, dos namorados, e depois fumam, suadas, exaustas, loiras - e no dia seguinte vão trabalhar.
E nas casas de banho dos bares do Bairro Alto, da Bica, desses sítios todos, os namorados debatem nas paredes sobre este rapaz, e desenham pénis horríveis, grandes, que despejam esperma na boca de um rapaz com eyeliner, e os sacos escrotais que eles desenham são imensamente peludos, feios, e suor forma gotas nas pontas. Alguns namorados são brasileiros, outros não, alguns são actores, e cocaína é cheirada nessas casas de banho e há sempre cocaína naqueles apartamentos e o rapaz está pedrado também, no fim, a sua roupa interior manchada de sangue.
Os namorados: gente que só se vê à noite. Um ou outro mais bonito, um ou outro da televisão, das revistas. Eles bebem cocktails no Bairro Alto e depois excitados no chuveiro eles masturbam-se em frente ao rapaz e dizem-lhe olha só para essa pila meu olha-me só para essa pila, e os pénis dos namorados tocam o pénis do rapaz e todos gemem e tudo é fantástico e as namoradas tiram fotografias, riem-se. Elas também aparecem nas revistas, nas festas, nos concertos, na televisão. E nas caves dessas casas, ou num quarto fechado nos apartamentos, alguém está amarrado a uma cadeira há demasiado tempo, cego pela escuridão, os seus pés nus mastigados por ratazanas, e esse alguém agita-se, desperta do torpor sempre que alguém passa em frente à porta - mas a porta não é aberta por muito tempo.
Os namorados: uma trupe amigável, carnavalesca. Uma segunda identidade. Todos gostam uns dos outros - até certo ponto. O rapaz fica sempre no lugar do meio, nos bancos de trás dos carros, das carrinhas. Toca, é tocado. É levado para matas, pinhais, solares, para casas em Galamares, para o Cristo-Rei, para os cemitérios de autocarros. É passado de mão em mão. É tratado como pede, tratado como foi aprendendo a querer. Ninguém fica a perder. Até certo ponto.
Os namorados já mostraram mais do que uma manifestação de crueldade. E se Lisboa soubesse, se os amigos soubessem... mas não importa porque o rapaz já recuperou de ontem à noite, já encontrou o caminho para casa e a Bica e S. Bento são apenas os fumos de sonhos maus. Não importa porque ninguém se importa. Por muitas palavras supostamente amigas que este rapaz oiça, ele sabe que não há ninguém a não ser os namorados. E já veste outra vez as meias, as ligas, já rapa cuidadosamente o peito, a púbis. Este rapaz sabe que não é mais do que um corpo colonizado por nódoas negras, um pescoço mordido, um pénis trilhado. Este rapaz está contente porque até agora nunca o prenderam para ser comido por ratazanas em quartos escuros. Este rapaz já viu mundo, já esteve alto, já está apaixonado outra vez.
E naquelas ruas escuras que bordejam S. Bento, onde à noite ninguém se dá ao trabalho de ir a não ser para vomitar, um rapaz corre e olha por cima dos ombros, tropeçando, e tudo o que ouve é a sua respiração, o seu terror, e as suas calças de licra apertam de forma intensa o saco escrotal à medida que este rapaz perde as energias, perde a calma - e ele esconde-se junto a uns andaimes que impedem casas de cair e chora baixinho, e olha para todos os lados (não vão os namorados voltar), e pensa na sua mãe, e pergunta-se onde é que tudo correu mal, e na sua mala preservativos bâton e metade de um telemóvel, uma pistola de água.
E no Bairro Alto, também à noite, quando alguns adolescentes crescem e outros se embebedam e tantos tantos descobrem o amor e o que o amor custa, um rapaz rodeado de homens é empurrado de um lado para o outro, é abraçado e beijado e manuseado e ninguém se importa com o que lhe acontece, e depois este rapaz vai para apartamentos e sai desses apartamentos de manhã e o dinheiro continua a aparecer não se sabe de onde, e se apenas Lisboa soubesse isto tudo, e se apenas os amigos deste rapaz soubessem - e no Príncipe Real este rapaz gira, embriagado, sorridente, acompanhado das namoradas dos namorados, e ele é uma mascote e elas esbofeteiam-no nos pátios e todos se riem, e todos são o máximo, e todos têm sonhos que os fazem cair da cama, e nas malas preservativos bâtons destroços de telemóvel, confettis, pistolas de água, instruções para fazer bombas caseiras.
E as namoradas dos namorados são as mais cruéis de todas, elas dizem fode-o fode-o, e riem-se nuas, pedradas na cama, e os namorados excitados agarram no pénis e perguntam ao rapaz queres que te foda com isto? e ele diz sim fode-me, e põe-se de gatas na cama e fecha os olhos e espera e as namoradas gritam fode-o fode-o, e vêm-se antes de toda a gente, e puxam os cabelos do rapaz, dos namorados, e depois fumam, suadas, exaustas, loiras - e no dia seguinte vão trabalhar.
E nas casas de banho dos bares do Bairro Alto, da Bica, desses sítios todos, os namorados debatem nas paredes sobre este rapaz, e desenham pénis horríveis, grandes, que despejam esperma na boca de um rapaz com eyeliner, e os sacos escrotais que eles desenham são imensamente peludos, feios, e suor forma gotas nas pontas. Alguns namorados são brasileiros, outros não, alguns são actores, e cocaína é cheirada nessas casas de banho e há sempre cocaína naqueles apartamentos e o rapaz está pedrado também, no fim, a sua roupa interior manchada de sangue.
Os namorados: gente que só se vê à noite. Um ou outro mais bonito, um ou outro da televisão, das revistas. Eles bebem cocktails no Bairro Alto e depois excitados no chuveiro eles masturbam-se em frente ao rapaz e dizem-lhe olha só para essa pila meu olha-me só para essa pila, e os pénis dos namorados tocam o pénis do rapaz e todos gemem e tudo é fantástico e as namoradas tiram fotografias, riem-se. Elas também aparecem nas revistas, nas festas, nos concertos, na televisão. E nas caves dessas casas, ou num quarto fechado nos apartamentos, alguém está amarrado a uma cadeira há demasiado tempo, cego pela escuridão, os seus pés nus mastigados por ratazanas, e esse alguém agita-se, desperta do torpor sempre que alguém passa em frente à porta - mas a porta não é aberta por muito tempo.
Os namorados: uma trupe amigável, carnavalesca. Uma segunda identidade. Todos gostam uns dos outros - até certo ponto. O rapaz fica sempre no lugar do meio, nos bancos de trás dos carros, das carrinhas. Toca, é tocado. É levado para matas, pinhais, solares, para casas em Galamares, para o Cristo-Rei, para os cemitérios de autocarros. É passado de mão em mão. É tratado como pede, tratado como foi aprendendo a querer. Ninguém fica a perder. Até certo ponto.
Os namorados já mostraram mais do que uma manifestação de crueldade. E se Lisboa soubesse, se os amigos soubessem... mas não importa porque o rapaz já recuperou de ontem à noite, já encontrou o caminho para casa e a Bica e S. Bento são apenas os fumos de sonhos maus. Não importa porque ninguém se importa. Por muitas palavras supostamente amigas que este rapaz oiça, ele sabe que não há ninguém a não ser os namorados. E já veste outra vez as meias, as ligas, já rapa cuidadosamente o peito, a púbis. Este rapaz sabe que não é mais do que um corpo colonizado por nódoas negras, um pescoço mordido, um pénis trilhado. Este rapaz está contente porque até agora nunca o prenderam para ser comido por ratazanas em quartos escuros. Este rapaz já viu mundo, já esteve alto, já está apaixonado outra vez.
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