quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Língua de gato

Após a morte da minha mãe, herdei a grande casa da Granja, cheia de gatos. A minha mãe vivera aí os últimos quinze anos da sua vida - após as circunstâncias trágicas que rodearam o desaparecimento do seu segundo marido, após o senhorio da casa de Espinho ter decidido vender os prédios "para empreendimentos".

Lembro-me do dia em que entrei pela primeira vez na grande casa herdada. Era um dia igual ao do funeral da minha mãe, um daqueles dias típicos de Outono em Espinho com a chuva fina a ser atirada em todas as direcções pelo vento, com a névoa que ficava presa às arestas das coisas, tornando-as longínquas, indefinidas. Não chorara pela morte da minha mãe - a chuva e o nevoeiro tornavam tudo irreal, e eu não estava preparada para aquilo e lembro-me que senti apenas um sono imenso, um sono de eras, pesado, rochoso. Um desejo de voltar para dentro. Três dias depois, as mesmas gotas de chuva à deriva no ar, entrei na casa, apaguei a luz de um candeeiro num dos quartos do andar de cima (que a minha mãe deixara acesa antes da sua morte) e instalei-me no quarto de hóspedes.

Ao contrário de todas as expectativas eu decidira ir viver para a Granja: sozinha aos quarenta e sem emprego, comecei a fazer e vender brinquedos de trapo pela Internet. Eu própria montei o web-site, e com a ajuda de uma câmara digital fiz uma galeria on-line, que permitia aos cibernautas escolher os artigos que queriam colocar no carrinho de compras - e depois podiam fazer o pagamento por cartão de crédito, embora eu também enviasse à cobrança. Instalara o meu ateliê na sala de jantar (que tinha uma grande janela semi-circular sobre um jardim que a minha mãe, nos seus últimos meses, deixara ao abandono) e todas as semanas me dirigia às imediações de uma fábrica de confecções, pois era aí, nos caixotes do lixo, que eu encontrava a matéria prima para as minhas criações.

Os meus dias eram portanto tranquilos, e eu dava de comer aos gatos que a minha mãe deixara pela casa (e que pareciam fazer a sua vida como antigamente, sem se darem por achados, como se nada tivesse acontecido), e depois via e respondia ao correio electrónico, aviava as encomendas enquanto bebia chá, ouvia Mozart, comia saladas com queijo feta. Falava por vezes ao telefone com amigos do Porto, e o vento passava pelos quartos do andar de cima, através das janelas que todas as manhãs eu deixava abertas.

Um dia, nos primeiros momentos da manhã, eu andava de roupão e chinelos pela casa a deixar comida de gato nas tigelas espalhadas pelos cantos e ouvia o apócrifo Libera me, o discutido final do Requiem de Mozart que foi encontrado recentemente nos arquivos da antiga catedral do Rio de Janeiro (este Libera me terá sido adaptado por Sigismund Neukomm, um colaborador de Joseph Haydn, aquando da sua viagem ao Brasil). Todos os dias eu fazia este ritual, e nas últimas semanas a minha forma de acordar era sentir os gatos a despontarem de debaixo dos móveis, saindo de portinholas ocultas, roçando os meus tornozelos nus, debruçando-se sem um som e sem um obrigado pelas tigelas que eu deixava cheias.

Nesse dia, o dia do Libera me, fui dar com um dos gatos num cadeirão da sala - um cadeirão de couro gretado, junto à grande janela, com almofadas que levavam impressas as formas da minha mãe, que nele se sentava para olhar o jardim. O gato parecia pouco interessado na comida, preferindo olhar-me com o corpo imóvel, sereno, altivo. Peguei nele e deixei-o no chão, empurrando-o gentilmente na direcção da tigela onde outros gatos se saciavam lentamente. Mas o gato voltou para cima do cadeirão e, assumindo de novo a postura sacerdotal, olhou-me como numa espécie de desafio.

Uma vez mais peguei nele e o deixei no chão, e uma vez mais ele subiu para o cadeirão, colocando os seus olhos nos meus. À terceira vez que peguei no gato (estava subitamente decidida a uma luta de vontades), as suas unhas agarraram-se a uma das almofadas, revelando por debaixo os óculos de aro fino da minha mãe. Fiquei parada a olhar para eles, o gato nas minhas mãos, até o seu corpo se debater e ele se soltar, apressando-se para fora da sala.

Sempre ciosa pela arrumação, a minha mãe pedia-me que voltasse a colocar os óculos na sua gaveta dos bordados!

E eu, liberta do choque, já chorava, já escondia a cara nas almofadas, já respirava o cheiro da minha mãe morta - e a manhã avançava por mim enquanto eu finalmente fazia o meu luto, e depois o Verão chegou.

Diana Matos (Granja)


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