terça-feira, julho 27, 2004

beleza

Como explicar isto? Como explicar este misto de atracção e repulsa que sinto por tudo o que é belo? Como explicar este equilíbrio que eu procuro em substituição da beleza, esta tranquilidade que sucede ao clímax, à tempestade, e cuja aspiração última é exactamente a ultrapassagem da necessidade de tempestades e de bonanças - numa espécie de fusão impossível com o que é Uno, belo e feio ao mesmo tempo?

Eu amo a tranquilidade e toda a minha vida é uma procura da ordem - a única beleza que está ao meu alcance. Isto porque em mim a contemplação estética é inseparável do terror: o que eu contemplo em algo que é belo não é um simples ordenamento feliz de um conjunto de características - é acima de tudo uma visão momentânea sobre um outro mundo. Ainda hoje sou gozado pelos meus amigos por um dia ter dito que uma certa rapariga tinha 'uma beleza assustadora'.
Este mundo do belo-em-si está irremediavelmente para além do existente e do concreto, para além do que me é dado e do que alguma vez poderei alcançar. Quando eu vejo algo belo eu tenho uma visão da beleza-em-si, do mundo do qual eu nunca farei parte. Por isso, a experiência estética é em última instância experiência de humilhação, é experiência de solidão extrema - é experiência de medo, não só devido à minha irredutível ausência, mas também devido a uma irredutível incapacidade.

Eu gostava de não pensar assim.

A beleza só se manifesta por revelação, por transcendência; ao mesmo tempo, as oportunidades de transcendência estão presentes nas coisas mais díspares, mais inesperadas. Por isso, é natural que me encontre por vezes siderado como uma criança diante das coisas mais simples, e é natural que passe horas em contemplação - coisa que não fazia há alguns anos.

O terror e o desconforto da experiência estética fazem com que procure alternativas. É para mim uma extrema violência ser confrontado, desprotegido, com um conjunto de imagens, portas para dentro desse mundo imensamente distante do meu. Por isso, é-me muito mais fácil mergulhar no submundo do que é feio e grotesco. Sinto-me muito mais à vontade. Mais do que isso, sinto que estou em casa, sinto-me no meu verdadeiro elemento.

No entanto, eu não sou este festim nu. (De facto, eu não sou nada do que tenho escrito, e ao mesmo tempo sou tudo). A minha incapacidade para lidar com a beleza não me impede de procurar a ordem, a tranquilidade - aqueles breves momentos em que tudo, tudo está no seu devido lugar, em que o belo e o feio se dissolvem e deixam de ter significado. Estes momentos são para mim o paraíso na terra. Constituem o 'as good as it gets' da minha vida. Sinto-me afortunado por ter tido bastantes desses momentos.

Por exemplo.

O autocarro em que viajávamos até La Guaira está avariado numa berma da auto-estrada.  Esperamos horas naquele autocarro, sem nada para fazer a não ser conversar. E o sol do fim de tarde torna tudo diferente, e os olhares e cumplicidades que se formam naquele autocarro estão para além do que posso explicar. Anoitece lentamente, vamos conversando, vamos fazendo companhia uns aos outros. Parece que havia uma rapariga espanhola que gostava de mim. Tudo é inocente, não há segundas intenções em nada. Eu estou em casa, tudo está em ordem.

Acordo no deserto indiano muito cedo pela manhã, e centenas de insectos voam silenciosamente por cima de mim, pontos fugidios no céu azulado, fresco. Apesar da enorme quantidade, nenhum dos insectos tenta poisar em mim, nenhum perturba o meu lento despertar. Parecem estrelas negras, e o céu está louco de tantas estrelas negras. Alguém na fogueira prepara o pequeno almoço e ao meu lado as mantas dos meus companheiros de viagem. Os camelos circulam livres, se fechar os olhos consigo visualizá-los pelos sons brandos que fazem. Quando me levanto, o meu tamanho é desmultiplicado em um milhão à medida que subo as dunas virgens e descubro toda aquela imensidão, o dia que se aproxima. Tudo está em ordem. Na minha cabeça, o Michael Stipe canta "I've been high".

Em Carupano, naquela noite, e Carupano era amor, deitado no chão a ver as estrelas do Sul e alguém ao meu lado a explicar-me aquelas estrelas todas, uma noite doce. Quando finalmente regresso à minha tenda naquela praia ela chama por mim e vejo a sua cara obscurecida por detrás do mosquiteiro. Aproximo-me e ficamos a falar por alguns segundos. Nessa altura as coisas ainda não se complicaram - ainda não estamos próximos o suficiente. Carupano era amor de manhã também, com a névoa no campo de palmeiras, com a simplicidade e o encanto insubstituível de algo que ainda não se concretizou, algo que não se chega a concretizar.

Entramos naquela cave em S. Bento e imediatamente os Smiths começam a tocar "This Charming Man", e eu estou com o João e a Raquel e o Tino e quero que eles saibam quem eu sou. E nessa noite Lisboa é nossa, e somos amigos, e não é preciso mais nada porque estamos juntos.

Ou aquele fim de tarde simples, sem solavancos, no Parque Eduardo VII e eu a despedir-me dela e ela a apanhar o autocarro para casa e eu a pensar onde é que já senti isto, eu a pensar isto sou eu antes de ter sido corrompido, eu a pensar julgava que estas coisas já não eram possíveis na minha vida.

Ou aquela frase final do Jack Kerouac, a frase mais bonita que alguém escreveu:

"So in America when the sun goes down and I sit on the old broken-down river pier watching the long, long skies over New Jersey and sense all that raw land that rolls in one unbelievable huge bulge over to the West Coast, and all that road going, all the people dreaming in the immensity of it, and in Iowa I know by now the children must be crying in the land where they let the children cry, and tonight the stars'll be out, and don't you know that God is Pooh Bear? the evening star must be drooping and shedding her sparkler dims on the prairie, which is just before the coming of complete night that blesses the earth, darkens all rivers, cups the peaks and folds the final shore in, and nobody, nobody knows what's going to happen to anybody else besides the forlorn rags of growing old, I think of Dean Moriarty, I even think of Old Dean Moriarty the father we never found, I think of Dean Moriarty."



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