quarta-feira, julho 28, 2004

Faltas tu

A primeira vez que vieste a Lisboa visitar-me eras apenas uma menina. Lembro-me de ti em Entrecampos à minha espera, no meio dos pardais. Estavas sentada num banco a olhar a estátua da Praça de Entrecampos. Perguntaste-me o que aquilo significava e eu não te soube explicar. Era Primavera, ou algo assim.

Nos autocarros as crianças cantavam, nessa altura em Lisboa. Tu achavas muita graça porque de onde vinhas as crianças não cantavam nos autocarros. Lembro-me do primeiro dia da tua primeira estadia em Lisboa e da forma como parecias maravilhada com tudo. Ao mesmo tempo olhavas-me, tímida. Sorrias. Uma menina. Eu queria tanto mostrar-te a minha cidade.

Deve ter sido por essas alturas que caímos no amor. No Rossio, uma noite, disseste que te tinhas apaixonado por mim "como uma tonta". Estava a chover e o autocarro da madrugada nunca mais chegava. Estávamos sentados à entrada de um restaurante de comida rápida e eu abracei-te. Não havia ninguém por perto, parecia que estávamos a viver num recreio só nosso.

Um dia, numa discoteca chamada Luanda, muitas pessoas morreram já não me lembro bem como. Ou foram incineradas ou gaseadas. Os meus pais tentaram ligar-me porque os pais preocupam-se, sabes, e o meu telefone estava desconectado. Sempre fui perito em pôr os meus pais doentes. Mas a culpa não é tua.

Depois andámos por Lisboa até nos fartarmos. Ou então ficávamos em casa. Nunca fizemos amor. Mas dávamos tantos beijos que os meus lábios ficavam vermelhos, inchados. Não sei se era amor o que sentia. Talvez não fosse. Comíamos muito pouco. Ficávamos deitados na cama a escutar os sons que vinham dos nossos estômagos vazios. Voltávamos aos beijos, etc.

Dizias-me que o vidro da janela do meu quarto tinha um furo microscópico, e era por isso que podíamos ver as luzes do trânsito a passar no tecto. Tu deixavas-me tocar os teus seios. Talvez fôssemos apenas dois jovens estranhos a crescer. Mas isso é o mais próximo que alguma vez estaremos do amor.

Ainda hoje não sei porque vieste, o que te passou pela cabeça para me surpreenderes assim, vinda do nada. Para abanares o meu mundo e deixares a marca dos teus pés em tudo o que era meu. Sinto que tenho de agradecer-te, mas é uma ironia amarga. E também não é preciso dizer adeus, agora que nunca mais nos voltaremos a ver.

Tudo isto porque tu nunca me deixaste. Simplesmente, estes anos de chuva intensa foram-te arrastando para longe. Nada escapa à erosão, e a areia é apenas ínfimas rochas indestrutíveis, solitárias e tristes e com vontade de se desfazer. Memória prega partidas, as minhas memórias estão cheias de arrependimentos. As rochas levadas pelo vento questionam-se qual é a razão de tudo, perguntam-se quando chegará a nova Idade do Gelo.

Os miúdos estão a perguntar se vai ficar tudo bem. Tenho demasiados telefonemas em lista de espera. A poeira da casa está em suspenso, iluminada do sol que entra pelas frinchas da persiana. A tua casa está à espera, está à espera que entres. Tudo é tudo, e vice-versa - as palavras começam a escassear. Em breve acabarão subitamente.

E eu sei que na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emergirá lentamente da selva esparsa, e eu sei que o dia estará quente, quente, e vice-versa. Este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo, etc., terá os olhos postos nos lugares vazios onde antes estavam os turistas. Ele vai deslizar por entre os esqueletos dos turistas que foi comendo ao longo destes anos todos. Ele vai perguntar-se: isto sou eu? Este ser de língua bífida, comprida, os olhos de réptil perverso? Eu sou este glutão? Este assassino? Sangue a escorrer das minhas mandíbulas? O dragão do Komodo vai ficar parado junto às carcaças pequeninas das crianças que devorou sem apelo nem agravo, vai considerá-las por algum tempo. Uma lágrima vai formar-se no canto do seu olho de réptil perverso e com a sua língua bífida ele vai lamber essa lágrima, o que imediatamente provocará uma irritação no olho de réptil perverso devido aos milhares de bactérias que colonizam a sua boca (e que normalmente provocam a morte por infecção às presas por ele mordidas, etc.). Este dragão do Komodo vai lamentar-se pela infantilidade das suas reacções. Ao longe vai ver os outros dragões do Komodo caçando os poucos turistas que ainda se arrastam pela praia: uma imensa arena ensanguentada, povoada por gemidos e braços esticados em pedidos de misericórdia.
Ilha de Rinca: terra sem rei nem roque. Lugar fodido para viver. Este dragão do Komodo vai sentir-se só.

Os miúdos estão a puxar as minhas mangas, vês? Organizaram esta festa e convidaram todos os amigos de toda a gente. Até os meus, até as pessoas que eu magoei e abandonei e violentei e desiludi. Durante a noite toda vamos beber daiquiris à volta da piscina. Mas faltas tu. E eu nem sequer lhes disse, eu nem sequer te disse ainda que tu já não estás viva, que tu nunca estiveste viva, que tu estás tão viva como a boneca insuflável Lola2000 com a qual partilho a cama, e que me beija apaixonadamente todas as noites antes de adormecer. 


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