sexta-feira, julho 30, 2004

My Love Life (1/2) (revisto)

Imaginem uma cena no fundo do mar: imaginem que estão parados no fundo do mar e que presenciam esta cena: imaginem um homem de cabelos compridos no fundo do mar, debatendo-se, olhos abertos de terror, um pedaço de tecido atado à cintura, e este homem está agarrado a uma corda que tem ao pescoço, e na outra ponta da corda está uma pesadíssima mó de pedra que irá sepultar este homem numa morte horrenda. Agora, se puderem, imaginem uma vez mais o pavor deste homem, a sua lenta asfixia, a forma como os seus pulmões vão encolhendo até ficarem do tamanho de laranjas (devido à pressão no fundo do mar), a forma como uma espuma branca começa a sair da sua boca (sinal de que os pulmões estão a receber água e a entrar em colapso), e depois o sangue, e os seus pulmões explodem, e ele ainda se debate durante longos segundos até a vida desistir dele.

Agora, no final, imaginem que toda esta cena foi ordenada por Jesus Cristo.

Multipliquem o que estão a sentir pelo infinito e ainda estão a anos-luz do que sente uma criança quando lê a Bíblia pela primeira vez, ou (como eu) quando vê uma daquelas edições ilustradas em que as gravuras são ainda mais explícitas do que esta pobre aproximação.

Mateus (18:1-6) conta-nos como os discípulos um dia perguntaram a Jesus qual era 'o maior no reino dos céus'. Jesus pôs diante deles uma criança e avisou: 'qualquer que escandalize um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fôra que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e se o fizesse afogar nas profundezas do mar'. Esta passagem é, segundo o meu conhecimento, a única em que Jesus advoga directamente a morte como punição para um determinado pecado (se tiverem conhecimento de outras, por favor digam).

A interpretação de uma passagem do famoso Sermão do Monte (Mateus 5:38-42) mostra-nos como, com a chegada de Jesus, a doutrina do 'olho por olho, dente por dente', bem presente no Velho Testamento (Êxodo 21:24, Levítico 24:20, Deuterónimo 19:21), é substituída pelo bem conhecido 'oferece a outra face'. No Velho Testamento, Deus era claramente uma entidade disciplinadora e vingadora que fulminava as pessoas por tudo e mais alguma coisa: veja-se o caso do pobre Onan (Genesis 38:8-10), de onde vem a palavra 'onanismo' (identificada, não com muita exactidão, com o acto de masturbação) - Onan terá sido um dos percursores da prática nefasta do coito interrompido. A chegada de Jesus e sua morte na cruz significam em termos teológicos a expiação dos pecados do Homem, e sua subsequente possibilidade de salvação. 

A minha interpretação deste episódio é a seguinte. Jesus parece dar a entender que a vida humana perde o seu valor a partir do momento em que é quebrada uma espécie de regra de ouro: a de não escandalizar as crianças, ou seja, a de não as levar ao pecado (algumas traduções, brasileiras por sinal, falam em 'fazer tropeçar' as crianças, como se estas estivessem num caminho que não deve ser perturbado). O que significará isto? Para mim, parece-me clara esta conclusão: para Jesus, a vida humana apenas tem valor em si enquanto não se perturbar a natural evolução das crianças, contaminando-as com as nossas ideias feitas e com o nosso pecado; em suma, enquanto a vida for dedicada a ajudar as crianças a seguir o seu caminho. 

Mais do que isso, Jesus diz que 'aquele que não receber o reino de Deus como uma pequena criança nunca nele entrará' (Marcos 10:15). Julgo que Ele quer dizer com isto que, nas condições em que nos encontramos neste momento, estamos perdidos. A nossa vida só tem sentido para ajudar aqueles que ainda não se corromperam, possibilitar a sua salvação. O Calvinismo vai recuperar esta ideia com a teoria da predestinação (acompanhada da assumpção, comum ao luteranismo, de que o ser humano é inerentemente mau): quando nasce, o ser humano já está destinado para a salvação ou danação. A vida deve ser vivida com uma ética virtuosa baseada na fé, e na vontade de fazer o melhor possível com o que nos foi dado. Max Weber vai ligar esta ideia de predestinação ao conformismo presente nas sociedades capitalistas, etc. 

Para Whitney Houston (NB não estou a estabelecer comparação entre o pensamento de Whitney Houston e Jesus, apenas a seguir um raciocínio), para Whitney Houston, dizia, a ideia gasta de que o 'futuro é das crianças' é, de uma forma bastante interessante, ligada ao amor-próprio. Na música 'The Greatest Love of All'  (do álbum ‘Whitney Houston’, Arista, 1985, escrita por Michael Masser e Linda Creed) os versos

'I believe the children are our are future / Teach them well and let them lead the way / Show them all the beauty they possess inside / Give them a sense of pride to make it easier'

...encontram a sua sequência no mítico refrão:

'The greatest love of all / Is easy to achieve / Learning to love yourself / It is the greatest love of all' 

Para Whitney Houston, a vida virtuosa  (isto é, com amor próprio) é a vida em que o ser se consciencializou de que a única coisa que vale a pena são as crianças. Mais: devemos ajudar as crianças a encontrarem o seu caminho e a orientarem-nos ('teach them well and let them lead the way') - porque nós, por nós próprios, estamos desamparados e perdidos. Amar o potencial inerente nas crianças é amar-se a si mesmo; é reconhecer, com humildade, que o sentido da nossa vida não somos nós, mas sim um esforço (que deve ser universal) para evitar que as crianças acabem da mesma maneira que nós.

 
(continua)


Free Hit Counter