Sete de trinta e três
Deixámo-la, desorientada mas sorridente, em frente a uma loja de pesticidas em Les Halles. Na prática, empurrámo-la para fora e arrancámos com urgência naquele carro malcheiroso onde dormíramos os três tantas noites, e a última imagem que tenho é da multidão de Les Halles a engoli-la e do seu sorriso imaculado, infantil - os olhos a procurarem uma referência enquanto segurava os sacos de plástico com todos os presentes que lhe havíamos dado: chocolates, flores, metade do dinheiro que nos restava.
O meu melhor amigo ia casar-se com uma princesa cigana de catorze anos cujos antepassados haviam pausado as suas transumâncias algures num ribeiro nas faldas dos Cárpatos, e por isso havíamos decidido atravessar a Europa de automóvel até ao altar. Inevitavelmente, acabáramos em Paris, não só devido a um conjunto inacreditável de enganos nas auto-estradas mas também porque fora em Paris que passáramos os melhores momentos da nossa amizade: aquele Inverno de vento e a Place de S.Michel e o meu pobre coração abandonado; o parque André Citroën; os cartazes com a Jane Birkin; a praceta em Ménilmontant onde Brian de Palma filmou a cena do «Bolero», no filme Femme Fatale.
Foi em La Rochelle que a apanhámos. Nós estávamos a pedi-las. Choveu em La Rochelle o tempo todo que lá estivémos, e nós íamos todos os dias para o porto a ver as cargas e descargas, os grandes navios e os contentores metálicos que formavam labirintos no chão cimentado: sentados por detrás de grades na erva suja e encharcados pela chuva miúda que o vento atirava em todas as direcções; bebíamos cerveja, pensávamos com temor naquele Atlântico negro diante de nós, voltávamos para o bairro dormitório onde estacionáramos o carro. Não falávamos muito: eram os nossos últimos dias juntos, e em breve eu entregaria o meu amigo num casamento negociado à lei da bala numa noite de póker.
Depois de a apanharmos (e não vou dizer como) ela passou a andar connosco e a beber da nossa cerveja, que carregávamos na mala do carro junto a um saco de cuecas que íamos deitando fora à medida que usávamos. Os fatos do casamento estavam enrolados em sacos do lixo e colados ao tecto do carro com fita adesiva; algures no carro estava ainda uma lâmina de barbear com a qual nos tornaríamos mais apresentáveis no dia da boda. Não tínhamos vontade de chegar àquela pequena aldeia cigana. Todo o nosso dinheiro ia para gasolina e para pão, que comprávamos invariavelmente em bombas de gasolina e consumíamos seco e simples, fatia a fatia, com pressa de engolir e sem paciência para mastigar. Dávamos-lhe do nosso pão, ela sorria sempre, falava pouco: depois às vezes um de nós fazia amor com ela e o outro esperava fora do carro, dando um passeio pela mata à beira da estrada na qual calhara pararmos.
Acho que ela nos agradecia. Não pela atenção descuidada que lhe dávamos, mas por todos aqueles quilómetros de boleia, quilómetros e quilómetros de uma distância que a separavam de La Rochelle e que se acumulavam dando-lhe segurança, e quanto mais nos afastávamos mais ela parecia ficar contente. Talvez fugisse de um casamento combinado em cima de uma mesa de póker, talvez precisasse apenas de mudar de direcção - ou de dizer não a uma terra de barcos que passavam.
A verdade é que chegámos a Paris e em Paris a nossa bondade esgotou-se, talvez por pressentirmos que Paris era a última paragem e a partir daí o casamento era real, a nossa separação incontornável. Por isso em Paris dissemos-lhe adeus, escolhemos Les Halles e abrimos-lhe a porta para a cidade. Não a voltámos a ver.
No último dia em Paris fui encontrar o meu amigo debaixo de um submarino. Tínhamos ido passear à Cité des Arts no nordeste da cidade, e eu andava encantado com as coisas que inventavam para as crianças se divertirem. Passáramos o dia a falar de Júlio Verne, de queijo. Bebêramos as últimas cervejas da mala do carro. Paris estava cinzenta e morna, já não havia sítio nenhum na cidade que nos pudesse acolher, confortar, surpreender. Não no estado em que estávamos. Lembrei-me de um pequeno apartamento de estudantes junto à Place d'Italie onde aprendi que todos os amores morrem, tudo estava silencioso debaixo do submarino à excepção dos esporádicos sons aquáticos pós-modernos que saiam da gigantesca esfera metálica ao nosso lado. Eu estava quase a sugerir um café ou um chocolate quente para celebrar o fim da cerveja, um regresso aos bulevares - St.Germain uma última vez antes de nos separarmos, antes de morrermos - e foi nessa altura que reparei que os ombros do meu amigo se sacudiam enquanto ele chorava. Ele dizia o que é que me aconteceu, o que é que me aconteceu.
O meu melhor amigo ia casar-se com uma princesa cigana de catorze anos cujos antepassados haviam pausado as suas transumâncias algures num ribeiro nas faldas dos Cárpatos, e por isso havíamos decidido atravessar a Europa de automóvel até ao altar. Inevitavelmente, acabáramos em Paris, não só devido a um conjunto inacreditável de enganos nas auto-estradas mas também porque fora em Paris que passáramos os melhores momentos da nossa amizade: aquele Inverno de vento e a Place de S.Michel e o meu pobre coração abandonado; o parque André Citroën; os cartazes com a Jane Birkin; a praceta em Ménilmontant onde Brian de Palma filmou a cena do «Bolero», no filme Femme Fatale.
Foi em La Rochelle que a apanhámos. Nós estávamos a pedi-las. Choveu em La Rochelle o tempo todo que lá estivémos, e nós íamos todos os dias para o porto a ver as cargas e descargas, os grandes navios e os contentores metálicos que formavam labirintos no chão cimentado: sentados por detrás de grades na erva suja e encharcados pela chuva miúda que o vento atirava em todas as direcções; bebíamos cerveja, pensávamos com temor naquele Atlântico negro diante de nós, voltávamos para o bairro dormitório onde estacionáramos o carro. Não falávamos muito: eram os nossos últimos dias juntos, e em breve eu entregaria o meu amigo num casamento negociado à lei da bala numa noite de póker.
Depois de a apanharmos (e não vou dizer como) ela passou a andar connosco e a beber da nossa cerveja, que carregávamos na mala do carro junto a um saco de cuecas que íamos deitando fora à medida que usávamos. Os fatos do casamento estavam enrolados em sacos do lixo e colados ao tecto do carro com fita adesiva; algures no carro estava ainda uma lâmina de barbear com a qual nos tornaríamos mais apresentáveis no dia da boda. Não tínhamos vontade de chegar àquela pequena aldeia cigana. Todo o nosso dinheiro ia para gasolina e para pão, que comprávamos invariavelmente em bombas de gasolina e consumíamos seco e simples, fatia a fatia, com pressa de engolir e sem paciência para mastigar. Dávamos-lhe do nosso pão, ela sorria sempre, falava pouco: depois às vezes um de nós fazia amor com ela e o outro esperava fora do carro, dando um passeio pela mata à beira da estrada na qual calhara pararmos.
Acho que ela nos agradecia. Não pela atenção descuidada que lhe dávamos, mas por todos aqueles quilómetros de boleia, quilómetros e quilómetros de uma distância que a separavam de La Rochelle e que se acumulavam dando-lhe segurança, e quanto mais nos afastávamos mais ela parecia ficar contente. Talvez fugisse de um casamento combinado em cima de uma mesa de póker, talvez precisasse apenas de mudar de direcção - ou de dizer não a uma terra de barcos que passavam.
A verdade é que chegámos a Paris e em Paris a nossa bondade esgotou-se, talvez por pressentirmos que Paris era a última paragem e a partir daí o casamento era real, a nossa separação incontornável. Por isso em Paris dissemos-lhe adeus, escolhemos Les Halles e abrimos-lhe a porta para a cidade. Não a voltámos a ver.
No último dia em Paris fui encontrar o meu amigo debaixo de um submarino. Tínhamos ido passear à Cité des Arts no nordeste da cidade, e eu andava encantado com as coisas que inventavam para as crianças se divertirem. Passáramos o dia a falar de Júlio Verne, de queijo. Bebêramos as últimas cervejas da mala do carro. Paris estava cinzenta e morna, já não havia sítio nenhum na cidade que nos pudesse acolher, confortar, surpreender. Não no estado em que estávamos. Lembrei-me de um pequeno apartamento de estudantes junto à Place d'Italie onde aprendi que todos os amores morrem, tudo estava silencioso debaixo do submarino à excepção dos esporádicos sons aquáticos pós-modernos que saiam da gigantesca esfera metálica ao nosso lado. Eu estava quase a sugerir um café ou um chocolate quente para celebrar o fim da cerveja, um regresso aos bulevares - St.Germain uma última vez antes de nos separarmos, antes de morrermos - e foi nessa altura que reparei que os ombros do meu amigo se sacudiam enquanto ele chorava. Ele dizia o que é que me aconteceu, o que é que me aconteceu.
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