terça-feira, março 01, 2005

Dois de trinta e três

"Olha e vê a porta que se entreabre lentamente – e saberás o que tenho andado a fazer. Olha, e ainda que não vejas nada de imediato, espera e deixa a porta entreabrir-se o suficiente para a luz entrar. Tem paciência. É que o que eu tenho andado a fazer não sou eu, não é meu. Vê, no entanto, como um sorriso se forma arduamente na minha cara: o sorriso cresce por entre a presença dos anos que por mim já passaram. Olha outra vez – agora: vê a forma pequena que se arrasta na nossa direcção. Como ela está compenetrada na tarefa de rastejar até nós! Como toda a sua vida se resume a atravessar a ombreira da porta, os olhos focados no chão em frente, e como não há mais nada no seu jovem pensamento do que a procura do sítio onde os seus membros se poderão apoiar para avançar!

Apresento-te a Inês. Não te deixes enganar pela sua tez miscigenada e pelos seus curtos cabelos encarapinhados: ela é minha filha, ainda que tanto eu como a sua mãe sejamos loiros. Não sei como aconteceu: um dia ela estava grávida, e noutro dia a Inês estava viva. A mãe da Inês diz que eu sou o pai da Inês, e quem sou eu para discordar? Tenho a certeza que vais compreender que não é preciso compreender de todo. Coisas destas não têm explicação. São um pouco como o amor que eu nunca senti por nada.

Nestes dias eu acordo cedo e o dia é todo meu e da Inês. Procuro empregos enquanto preparo papas. Provo papas, dou papas, não há empregos, lavo as tigelas das papas, pego ao colo da Inês – faço as coisas que os pais fazem. Nada disto é meu, nem esta casa, mas tenho-me lentamente instalado no meio de estranhos e até já a Inês me reconhece. Ela diz-me (pede-me?) “papa”.

Gosto quando a sua mãozita se agarra a um dos meus dedos que entretanto se tornaram anafados. Gosto quando ela bamboleia as suas pernas fracas quando a seguro, e quando ela ri ao ouvir música. Limpo a baba que escorre da sua boca, dou-lhe um beijo antes de dormir, encomendo-a ao Anjo da Guarda porque ela ainda não sabe e eu tenho medo da morte súbita dos bebés.

A Inês nasceu já há algum tempo. Depois disso, casei-me e divorciei-me. Depois juntei-me. Depois separei-me. Depois apaixonei-me, e depois descobri que me tinha enganado. Neste momento não sei bem qual é o meu estatuto. Estou desempregado e sou dono de casa, embora a casa não seja minha. A mãe da Inês namora com homens e às vezes ela não vem dormir a casa. Eu nunca lhe toco. A mãe da Inês é uma mãe maravilhosa, e não estou a ser irónico. A Inês adora a mãe, e a mãe está sempre presente, exceptuando o tempo para trabalhar e namorar. Eu também estou sempre presente para a Inês, exceptuando o tempo para tomar duche, fazer necessidades.

Tenho suores frios: engordei. Também tenho suores quentes, em especial quando aspiro a casa ou mudo os lençóis ou lavo o chão da casa de banho. Nunca mais escrevi e nunca mais li. Fico mais careca a cada dia que passa. Às vezes fico muito ansioso, mas depois a Inês começa a fazer barulho e isso acalma-me. Tenho medo que ela um dia cresça e comece a odiar-me. Sei que isso irá acontecer inevitavelmente, mas gostava de arranjar uma vida própria (e uma casa própria), de forma a poder estar triste em paz.

Escrevia-te aquelas cartas enquanto a mãe da Inês via filmes do David Lynch com a Inês adormecida ao colo. Ontem a mãe da Inês cozinhou um gratinado de espargos maravilhoso e eu pedi-lhe a receita, que arquivei imediatamente no meu livro de receitas que já vai com duzentas e cinco. Depois, juntei-me a elas na penumbra da sala, embora não goste de David Lynch. A mãe da Inês diz que eu sou o pai da Inês e a Inês precisa de um pai à altura das circunstâncias. Entretanto, cortaram-me o subsídio de desemprego e fui relegado para a categoria de ”indiferente para a sociedade”. Engordo e rio, e engasgo-me quando como e rio ao mesmo tempo. Às vezes oiço Mahler, e é então que me sinto arrependido. Mas mesmo isso não é suficiente, nem de perto nem de longe, para eu deixar de fazer o que tem de ser feito.

Sinto saudades tuas, amigo. Tenho sentido a falta das nossas conversas e da nossa juventude. Soube que ganhaste um lugar importante na estrutura governamental. Mas sossega! Não venho pedir-te favores nem empregos. Apenas cinco minutos do teu tempo para continuares a ler as minhas cartas que, prometo, vão recomeçar agora com mais frequência.

É isto, portanto, que tenho andado a fazer. Desculpa o meu silêncio dos últimos tempos, mas a Inês tem andado especialmente rabugenta. Posso agora, enfim, voltar à rotina desta vida que, repito, não é a minha. Eu não me sinto eu – e pergunto-te: não é irónico? Não é isso mesmo que mereço?"


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