Cinco de trinta e três
Kid A (EMI: 2000) significou o fim da minha relação com os Radiohead. É necessário que compreendas o que era para mim viver em Lisboa nessa altura. Tenho escrito muito sobre isso, eu sei, mas é preciso que tentes comigo visualizar uma vez mais aquele Inverno em Lisboa, aquelas ruas escorregadias ao fim do dia e aqueles autocarros lotados, e eu a regressar da universidade com o cabelo demasiado comprido – com o sabor da acetona na boca. Preciso que me imagines em Benfica outra vez, sozinho num apartamento cheio de pó e fantasmas e ruídos, preciso que faças isso para que te explique a minha dor ao ouvir pela primeira vez Kid A (EMI: 2000), compreendendo como uma pancada forte na cabeça que os Radiohead já não me pertenciam: tinham-se tornado complexos, tinham avançado, crescido, tinham ficado fartos daquela relação tranquila que mantínhamos os dois. O que eram aquelas vozes distorcidas, aquelas batidas electrónicas, aquela ausência de lirismo? Porquê tudo assim tão súbito? Porquê exactamente naquele momento?
Eu tinha coberto as paredes do meu quarto com fotografias de crianças a chorar, mulheres mastectomizadas, esqueléticos prisioneiros de Dachau. Programava a minha primitiva máquina fotográfica para me tirar fotos sem roupa. O mundo parecia tão confuso quando visto da minha janela: os carros a subir e a descer a Avenida da República Peruana, as gotas de chuva no vidro, o frio que eu sentia em todo o lado - a camada de poeira no chão do quarto na qual se distinguiam as minhas pegadas. Nesse quarto eu tinha pela primeira vez tocado os seios de uma rapariga. E o sexo era para mim um procedimento ritual, uma formalização de violência, dor, dominação – prima nocte, patria potestas, spinta criminosa.
Depois às vezes o sol brilhava aos domingos e a minha mãe vinha ver-me e aquele que tinha sido o meu melhor amigo na infância mostrou-me os Belle & Sebastian – converti-me imediatamente. Também ouvia muito Smashing Pumpkins na altura, Smashing Pumpkins que se tornaram grandes e depois incharam e ficaram balofos e pedantes e eventualmente explodiram como sapos. A rapariga por quem estava «apaixonado» na altura gostava de Smashing Pumpkins também, mas depois os Radiohead lançaram o Kid A (EMI: 2000) e ela adorou e eu compreendi que tudo estava acabado entre nós. Eu arranjei tudo o que havia a arranjar de Belle & Sebastian e preparei-me para um longo Inverno: comecei a escrever poemas, a ir ao cinema sozinho, a passar grandes temporadas fechado em casa a estudar e a consumir pornografia.
E sempre aquele apartamento tão grande, tão vazio. Tudo tão asquerosamente rudimentar. Os tapetes picavam-me os pés, o cotão acumulava-se em bolas que eu tentava agarrar. Pêlos púbicos no chão da casa de banho, bagos de arroz espalhados na cozinha, infiltrações na marquise, um congelador que simplesmente pifou, eu desenvolvi na altura diversas paranóias que incluíam preocupações com o gás ou as luzes ligadas, com aquecedores deixados no seu livre curso de destruição e queima. Era o melhor aluno da turma, por todos admirado pela minha sensatez e bom humor. Amigo dos meus amigos, membro influente de movimentos associativos, eu sangrava pelo nariz, pela boca, pelos dedos, pelo cu.
Kid A (EMI: 2000), um álbum genial e que consagrou os Radiohead como uma das bandas mais influentes do pop-rock no início do século XXI, significou para mim uma traição. Mas, note-se, a traição não foi dos Radiohead. Foi minha. Eu estava demasiado ocupado com a minha vida pequena e com a movimentação regular das peças no meu tabuleiro pequeno, e não acreditei, ou não tive tempo, ou simplesmente deixei as coisas passar. Sinto-me hoje como aquele amante infiel que compreende que o mais ínfimo momento de dúvida oblitera o amor mais profundo. Comprei o seguinte álbum de Radiohead, Amnesiac (EMI: 2001), mas ofereci-o algumas semanas depois ao meu irmão, porque compreendi que já não havia entre mim e os Radiohead uma relação de possessão. Eles tinham feito parte de uma etapa da minha vida, mas ambos tínhamos avançado e tomado caminhos diferentes. Ainda hoje oiço Radiohead, mas é com um pouco de mágoa porque eles já não são meus, já não são eu. Aprendi contudo que é preciso deixar as coisas passar.
Em compensação, tenho os Belle & Sebastian. Esses sim, são meus e eu deles. Tenho também aquelas músicas todas que ouvi quando era mais novo e que fizeram o seu ninho nos recônditos da minha memória: “Lady in Red” de Chris de Burgh, “Nikita” de Elton John, “Don’t Dream It’s Over” dos Crowded House – coisas assim, sem demasiada importância. Gosto especialmente dos grupos dos anos 80 que tiveram um sucesso meteórico e dos quais nunca mais ninguém ouviu falar, cantores como John Waite, Al Stewart, Glenn Medeiros, pessoas que como eu subiram e desceram, deixando apenas farrapos, pechisbeques, memórias embaraçosas – pequenas pistas de tudo e de nada, nas quais alguém um dia poderá ou não reparar.
Eu tinha coberto as paredes do meu quarto com fotografias de crianças a chorar, mulheres mastectomizadas, esqueléticos prisioneiros de Dachau. Programava a minha primitiva máquina fotográfica para me tirar fotos sem roupa. O mundo parecia tão confuso quando visto da minha janela: os carros a subir e a descer a Avenida da República Peruana, as gotas de chuva no vidro, o frio que eu sentia em todo o lado - a camada de poeira no chão do quarto na qual se distinguiam as minhas pegadas. Nesse quarto eu tinha pela primeira vez tocado os seios de uma rapariga. E o sexo era para mim um procedimento ritual, uma formalização de violência, dor, dominação – prima nocte, patria potestas, spinta criminosa.
Depois às vezes o sol brilhava aos domingos e a minha mãe vinha ver-me e aquele que tinha sido o meu melhor amigo na infância mostrou-me os Belle & Sebastian – converti-me imediatamente. Também ouvia muito Smashing Pumpkins na altura, Smashing Pumpkins que se tornaram grandes e depois incharam e ficaram balofos e pedantes e eventualmente explodiram como sapos. A rapariga por quem estava «apaixonado» na altura gostava de Smashing Pumpkins também, mas depois os Radiohead lançaram o Kid A (EMI: 2000) e ela adorou e eu compreendi que tudo estava acabado entre nós. Eu arranjei tudo o que havia a arranjar de Belle & Sebastian e preparei-me para um longo Inverno: comecei a escrever poemas, a ir ao cinema sozinho, a passar grandes temporadas fechado em casa a estudar e a consumir pornografia.
E sempre aquele apartamento tão grande, tão vazio. Tudo tão asquerosamente rudimentar. Os tapetes picavam-me os pés, o cotão acumulava-se em bolas que eu tentava agarrar. Pêlos púbicos no chão da casa de banho, bagos de arroz espalhados na cozinha, infiltrações na marquise, um congelador que simplesmente pifou, eu desenvolvi na altura diversas paranóias que incluíam preocupações com o gás ou as luzes ligadas, com aquecedores deixados no seu livre curso de destruição e queima. Era o melhor aluno da turma, por todos admirado pela minha sensatez e bom humor. Amigo dos meus amigos, membro influente de movimentos associativos, eu sangrava pelo nariz, pela boca, pelos dedos, pelo cu.
Kid A (EMI: 2000), um álbum genial e que consagrou os Radiohead como uma das bandas mais influentes do pop-rock no início do século XXI, significou para mim uma traição. Mas, note-se, a traição não foi dos Radiohead. Foi minha. Eu estava demasiado ocupado com a minha vida pequena e com a movimentação regular das peças no meu tabuleiro pequeno, e não acreditei, ou não tive tempo, ou simplesmente deixei as coisas passar. Sinto-me hoje como aquele amante infiel que compreende que o mais ínfimo momento de dúvida oblitera o amor mais profundo. Comprei o seguinte álbum de Radiohead, Amnesiac (EMI: 2001), mas ofereci-o algumas semanas depois ao meu irmão, porque compreendi que já não havia entre mim e os Radiohead uma relação de possessão. Eles tinham feito parte de uma etapa da minha vida, mas ambos tínhamos avançado e tomado caminhos diferentes. Ainda hoje oiço Radiohead, mas é com um pouco de mágoa porque eles já não são meus, já não são eu. Aprendi contudo que é preciso deixar as coisas passar.
Em compensação, tenho os Belle & Sebastian. Esses sim, são meus e eu deles. Tenho também aquelas músicas todas que ouvi quando era mais novo e que fizeram o seu ninho nos recônditos da minha memória: “Lady in Red” de Chris de Burgh, “Nikita” de Elton John, “Don’t Dream It’s Over” dos Crowded House – coisas assim, sem demasiada importância. Gosto especialmente dos grupos dos anos 80 que tiveram um sucesso meteórico e dos quais nunca mais ninguém ouviu falar, cantores como John Waite, Al Stewart, Glenn Medeiros, pessoas que como eu subiram e desceram, deixando apenas farrapos, pechisbeques, memórias embaraçosas – pequenas pistas de tudo e de nada, nas quais alguém um dia poderá ou não reparar.
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