Três de trinta e três
"Vi o João, no domingo passado. Eu tinha ido a Sintra com o Diogo e foi em frente ao Palácio da Vila que eu vi o João, e trocámos um breve olhar de reconhecimento antes que ele desviasse a cara. Eu fiquei subitamente séria e também o João ficou; não nos falámos. Ele ia com uma rapariga; antes de me ter visto, eu já tinha reparado naquele casal e eles pareciam felizes.
Espero que o João esteja feliz. Lembro-me de algumas frases que lhe disse: “Quando nós fizermos amor vai ser como quando tu cantas e tocas guitarra para mim”; “Por minha culpa dois bebés morreram”; “Eu preciso que vocês se dêem bem”; “Um dia vais olhar para ela e dizer-lhe que amas cada milímetro do seu corpo”. Lembro-me também de dizer ao Diogo, uma noite, chorando na cama depois de mais uma discussão: “Eu gostava tanto do João, e agora começo a odiá-lo”. Lembro-me do João a arder em febre na cama, no dia em que abandonámos a casa – todas aquelas coisas que ele andava a tomar na altura. Nunca chegámos a dizer adeus. E lembro-me de como me apaixonei pelo Diogo numa daquelas manhãs de sol em Alcântara – ele a treinar remo com a equipa e eu sentada em frente a uma grande janela sobre o rio, a falar ao telefone. Eu estava sempre a falar ao telefone, mas não tinha telefone próprio. O João fazia os meus telefonemas.
Lembro-me também da Rute, a cabra de Campo de Ourique, e da sua chapeleira e das suas mamas e da forma como tentei juntá-la ao João. Nada correu como eu planeara.
Estávamos tão extraordinariamente lúcidos nessa altura, eu e o Diogo. Estávamos apaixonados, desesperados. Queríamos ter sucesso, queríamos estar juntos. Não tínhamos pais, não tínhamos muito dinheiro. O Diogo ainda nem estava na universidade. Pensávamos que íamos ter um filho.
E o João era uma pessoa tão boa – ou pelo menos assim me pareceu. Estava sozinho em Lisboa e tinha aquele ar perdido dos poetas, dos melancólicos, dos homossexuais. Precisava tanto de carinho, de uma namorada. Tentei ser amiga dele. Passeávamos nos jardins da Gulbenkian e ele falava-me de “sexo pago em sacos-cama”. Compreendi logo que ele era diferente dos outros.
Tive tantas saudades do João. Agora sei que, pelo menos, ele não está sozinho. Pergunto-me se ainda escreve, pergunto-me o que foi dele. Pergunto-me se ainda pensa em mim, como eu penso nele.
Nos últimos dias antes de deixarmos de viver juntos, planeei muitas vezes uma carta de despedida em que lhe contaria todas as coisas, para que ao ler essa carta ele me fosse tentando compreender – dado que era improvável que voltássemos a ver-nos. Pensei até em ir falar-lhe - sentar-me junto à cabeceira da cama onde ele suava e delirava, talvez afagar-lhe a testa, a mão adormecida. Tantas coisas ficaram por explicar. Talvez as coisas tivessem resultado com um pouco mais de tempo e calma. Perdemo-nos um ao outro.
Isto sou eu, quase quatro anos depois. Porque na altura eu sei que estava entusiasmada. Um pouco magoada com o desenlace, e com a imagem do João na cama, incapaz de fazer fosse o que fosse – todas aquelas coisas más que ele consumia na altura. Mas foi com alívio que me vi fora de Benfica, e nem vacilei ao abrir a porta daquele sótão na Praça da Alegria onde eu e o Diogo viveríamos nos anos seguintes.
Sim: tropecei umas quantas vezes e deixei cair algumas coisas durante a mudança. Mas estava feliz, eu sei que estava feliz: íamos começar uma vida nova numa casa velha."
Espero que o João esteja feliz. Lembro-me de algumas frases que lhe disse: “Quando nós fizermos amor vai ser como quando tu cantas e tocas guitarra para mim”; “Por minha culpa dois bebés morreram”; “Eu preciso que vocês se dêem bem”; “Um dia vais olhar para ela e dizer-lhe que amas cada milímetro do seu corpo”. Lembro-me também de dizer ao Diogo, uma noite, chorando na cama depois de mais uma discussão: “Eu gostava tanto do João, e agora começo a odiá-lo”. Lembro-me do João a arder em febre na cama, no dia em que abandonámos a casa – todas aquelas coisas que ele andava a tomar na altura. Nunca chegámos a dizer adeus. E lembro-me de como me apaixonei pelo Diogo numa daquelas manhãs de sol em Alcântara – ele a treinar remo com a equipa e eu sentada em frente a uma grande janela sobre o rio, a falar ao telefone. Eu estava sempre a falar ao telefone, mas não tinha telefone próprio. O João fazia os meus telefonemas.
Lembro-me também da Rute, a cabra de Campo de Ourique, e da sua chapeleira e das suas mamas e da forma como tentei juntá-la ao João. Nada correu como eu planeara.
Estávamos tão extraordinariamente lúcidos nessa altura, eu e o Diogo. Estávamos apaixonados, desesperados. Queríamos ter sucesso, queríamos estar juntos. Não tínhamos pais, não tínhamos muito dinheiro. O Diogo ainda nem estava na universidade. Pensávamos que íamos ter um filho.
E o João era uma pessoa tão boa – ou pelo menos assim me pareceu. Estava sozinho em Lisboa e tinha aquele ar perdido dos poetas, dos melancólicos, dos homossexuais. Precisava tanto de carinho, de uma namorada. Tentei ser amiga dele. Passeávamos nos jardins da Gulbenkian e ele falava-me de “sexo pago em sacos-cama”. Compreendi logo que ele era diferente dos outros.
Tive tantas saudades do João. Agora sei que, pelo menos, ele não está sozinho. Pergunto-me se ainda escreve, pergunto-me o que foi dele. Pergunto-me se ainda pensa em mim, como eu penso nele.
Nos últimos dias antes de deixarmos de viver juntos, planeei muitas vezes uma carta de despedida em que lhe contaria todas as coisas, para que ao ler essa carta ele me fosse tentando compreender – dado que era improvável que voltássemos a ver-nos. Pensei até em ir falar-lhe - sentar-me junto à cabeceira da cama onde ele suava e delirava, talvez afagar-lhe a testa, a mão adormecida. Tantas coisas ficaram por explicar. Talvez as coisas tivessem resultado com um pouco mais de tempo e calma. Perdemo-nos um ao outro.
Isto sou eu, quase quatro anos depois. Porque na altura eu sei que estava entusiasmada. Um pouco magoada com o desenlace, e com a imagem do João na cama, incapaz de fazer fosse o que fosse – todas aquelas coisas más que ele consumia na altura. Mas foi com alívio que me vi fora de Benfica, e nem vacilei ao abrir a porta daquele sótão na Praça da Alegria onde eu e o Diogo viveríamos nos anos seguintes.
Sim: tropecei umas quantas vezes e deixei cair algumas coisas durante a mudança. Mas estava feliz, eu sei que estava feliz: íamos começar uma vida nova numa casa velha."
<< Home