sábado, agosto 07, 2004

Sete maneiras de ir dormir (VI)

Quando me vou deitar as crianças começam a chegar. São muitas, e eu não sei de onde elas vêm. Eu fico sentado na cama, agora verdadeiramente apanhado de surpresa, e as crianças vão-se juntando à minha volta. Estão sempre a olhar para mim.

Os cabelos delas são cinzentos, velhos. Os seus olhos não estão exactamente aqui. São os olhos de quem não está vivo. As crianças estão vestidas com as roupas com que foram enterradas.

Elas perguntam-me como é ser adulto, como é crescer. Eu respondo-lhes e elas ouvem-me com atenção.

‘Isto aqui também não é fácil’, dizem elas em uníssono. Elas falam-me, sempre a uma só voz, das coisas que não podem fazer, de como a sua vida se tornou um ciclo, um eterno retorno.

E às vezes eu falo e depois elas falam, mas a maior parte do tempo estamos em silêncio e elas continuam de pé, à volta da minha cama, pálidas e olhando-me sem pestanejar. As horas passam e finalmente eu decido-me a tentar adormecer. Elas não mostram vontade de se ir embora, mas também não me impedem.

Quando fecho os olhos eu oiço-as pela última vez, e todo eu me contorço num imenso arrepio:
‘Podes dormir, mas nunca mais irás sonhar’.




(inspirado em 'Suffer Little Children', The Smiths)


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