segunda-feira, março 20, 2006

Depois

O som do avião fica muito tempo por debaixo das nuvens, entre os prédios, incapaz de sair. Chove, é noite, tenho frio. A tua casa está à espera, à espera que regresses.

Abri o pacote de leite e despejei-o inteiro na jarra, e só depois o coloquei no frigorífico. Era assim que fazias. Punhas a jarra do leite na mesa das refeições. Querias os alimentos todos fora das embalagens, dos plásticos, das cores fortes dos rótulos.

De manhã, eles ficam a olhar para mim com aqueles olhos do Biafra, a remoer os bolos na boca, as pernas a abanar nas cadeiras, longe do chão - já todos vestidos e equipados para sair. Eu fico encostado ao balcão da cozinha a olhar para eles. Empurro uma torrada e os comprimidos com leite. Não digo nada: eu sou o estranho, o passageiro. Eu sou o que ficou.

Telefonemas de noite deslizam para conversas breves deslizam para combinações vagas para jantar, sair, "tomar café". Eles brincam na sala e nas suas brincadeiras matam e morrem, e quando eu entro eles ficam a olhar para mim com aqueles olhos de outra raça. Todos estamos à espera.

Não há informação. Não há relatórios oficiais. Alguém terá o meu contacto? Terão sido "despoletados os mecanismos habituais"? E se ligarem quando eu não estou em casa? O som dos carros a amaciar as ruas à chuva, e o som da chuva nos carros estacionados em frente à janela. As árvores bebem, a água entra pelas pequenas superfícies de terra da cidade (os canteiros sujos, as fendas nos pavimentos), e penetra mais fundo, é atraída para baixo, até a gota deixar de ser.

Deixaste umas coisas no frigorífico de que mais ninguém gosta. Deixaste uma toalha com o teu cheiro atirada para um canto da casa de banho. E o teu cheiro desvanece-se lentamente, partícula a partícula, e a toalha ainda lá está. Fizeste umas encomendas que chegarão em breve, deixaste um casaco na lavandaria que terei de ir buscar.

O som metálico da cidade e as pessoas como pequenos invólucros a saltitar na rua. É estranho que o mundo não acabe, agora que já cá não estás. Tudo demora muito tempo a passar, e as coisas ficam presas entre as nuvens e os prédios, incapazes de sair. Faltas tu. Estamos à espera.


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