sexta-feira, março 10, 2006

Os olhos bem fundo no espelho

Noite cai sobre Mayfair, faróis de carros em superfícies molhadas e as silhuetas das pessoas não têm cara. Marriott Park Lane, 3º andar: põe de lado o roupão e os chinelos de oferta e abre a mochila, olha para dentro, fecha a mochila. Vai à casa de banho. Põe de lado os sabonetes e os amaciadores e as esponjas e tonificadores e exfoliantes e desmaquilhadores - de oferta - e lava as mãos com água fria. Passa as mãos em frente da cara, duas vezes, como se quisesse lavá-la. Volta ao quarto. Senta-se no chão. Olha pela janela.

Atrás de si, a cama que permanecerá por usar. Lá fora buzinas, faróis de carros na rua molhada e os vultos sem cara, sem coração. Nas entradas sacudindo guarda-chuvas. Saltando para evitar poças de água, ombros batendo em ombros. Alguém é quase atropelado, alguém beija alguém. No cruzamento, um cartaz com pernas, braços e cabeça anuncia, às voltas, uma feira de computadores. Até a publicidade tem sangue. As pessoas precisam de um sítio para ir. As pessoas precisam de comida na boca. Até a comida tem sangue.

Quarto escuro, passos no corredor que se esvaem num som de porta a bater. Levanta-se e desenrola uma esteira. Senta-se. Fala baixo durante muito tempo. Abana o corpo, olhos fechados. Chora. Depois de terminar, revê mentalmente os planos para o dia seguinte. Sair cedo. Depois Holborn. E pronto.

Houve um dia uma princesa - e um laranjal. Houve um dia um beijo na testa, e alguém que segurou a sua cabeça de criança entre as mãos. Nas montanhas da Caxemira uma serpente esconde-se entre pedras, à beira do caminho. O viajante passa.

No dia antes do martírio, o mujahid rapa cuidadosamente a barba.


Free Hit Counter