terça-feira, junho 29, 2004

Genéve

Eu tinha na minha mala uma tradução espanhola de 'Cacau' de Jorge Amado, que me tinha sido oferecida por uma senhora espanhola a viver na Suíça e que, não sei porquê, estava a ler. No corredor do hotel estava uma americana sentada no chão a ouvir música, sandálias ao lado dos pés nus, e eu estava a dizer coisas como "I'm a country boy" e "I'm from a small town in Alabama" e "My grandfather has a farm", vezes e vezes sem conta, e conseguia ver que estava a parecer estúpido e ela claramente não estava impressionada por isso mudei para outros temas como o James Taylor que tinha estado quatro vezes num hospital de saúde mental, a diferença entre Vermont e Vancouver, a excelente programação cultural da Primavera em Viena (eu nunca tinha estado em Viena), a vida nocturna de Praga ('vida nocturna de Praga'?), coisas assim. E ela continuava a sorrir mas apenas por tolerância acho, e quando fiquei sem coisas para lhe dizer virei-me para uma rapariga gorda sul-africana que também estava por lá a rir-se demasiado e ela estava viciada em morfina desde que tinha feito uma operação à coluna e eu 'oh really?' tentando não parecer muito impressionado, e havia figurantes a abrir as portas dos quartos e a mandar-nos calar e nós ficámos por lá até ser tarde - estávamos sozinhos, afinal, e o guião dizia explicitamente para conhecermos pessoas e sermos simpáticos, e eu obedecia às orientações do realizador e as câmaras seguiam-me para todo o lado.

Só depois, dias mais tarde, chegámos a Viena, mas como sempre lembro-me mais da viagem do que propriamente da estadia - o rapaz húngaro cego de barbas compridas a dormir no corredor do comboio devido a sobrelotação e a tocar com os dedos durante a longa noite o seu violinozito desfeito, e apesar de ser cego e ter todo o estilo de ser um daqueles artistas sobredotados e geniais tocava mal mal mal mal, e a sua companheira também agonizava orgulhosamente no corredor - de modo que acabámos por lhes deixar tomar os nossos lugares durante umas horas. Lembro-me dos seus diálogos em húngaro (ciganos, florestas, fogueiras à noite, Transilvânia) com o som do comboio e do vento e o cheiro dos campos à noite no fundo, e o realizador estava a dizer-me para 'parecer sonhador e sensível' por isso eu tentava escrever uns poemas enquanto pensava porque raio uma rapariga quereria andar pela Europa fora com um pobre diabo daqueles, mas claro que isso era apenas eu a pensar e quem me manda a mim pensar, e de qualquer modo toda aquela solidariedade da estrada e dos carris estava a começar a fartar-me e eu não via nenhuma solução para o que de facto importava na minha vida, portanto: fast forward até Nîmes, França (outra cidade, as mesmas gajas de sempre) e zoom in até eu nas galerias escuras de um teatro romano, caído de joelhos, a enxotar morcegos e a vomitar.


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