terça-feira, julho 13, 2004

Diários do Basquetebol

Estou na Covilhã. Catiqui está a tentar convencer-me, a mim e ao JM, que a rapariga na mesa lá ao fundo é uma prostituta. Miguel, a estrela do CDC (Clube Desportivo da Covilhã) fornece-nos um conjunto de provas: Catiqui inclusive já despejou um balde de água em cima dela, quando ela satisfazia um cliente debaixo da sua janela à noite. Eu estou a pensar que a Covilhã deve ser mesmo muito desenvolvida, para ter pessoas pretas como o Catiqui.

Estou na Guarda. JM recebe a quinta falta e é expulso. Eu estou sentado no banco a assistir àquilo. JM resmunga com o árbitro e chuta uma bola e sai para o balneário a chorar (os cabelos loiros, a cara de menino, eu adorava-o). Nesse dia jogamos tão mal que eu, com nove pontos, me torno o melhor marcador da equipa. A Associação Desportiva da Guarda dá-nos lanche mas eu nessa altura não gosto de sandes de fiambre.

Estou em Castelo Branco. Perdemos escandalosamente um jogo contra uma equipa manifestamente inferior a nós. Não conseguíamos ver bem as linhas porque estavam pintadas numa tinta clara, e por isso estávamos sempre a sair de campo com a bola controlada. No balneário ao lado a equipa da casa festeja. Daniel salta e parte um dos vidros que separam os dois balneários. Os ruídos dos festejos param subitamente.

Estou no Fundão. Recebo a bola de Maia (aka "Palanca Negra", aka "Pérola do Zêzere") e marco um dos pontos da vitória contra a Covilhã. O pavilhão salta em uníssono e festeja o meu ponto - eu não sabia que estas coisas podiam acontecer na vida real. Durante essa semana, o treinador ("Furra") tinha iniciado um dos treinos com um minuto de silêncio. Não conseguimos controlar o riso. Depois viémos a saber que esse minuto de silêncio se devia à morte do irmão de Dionísio ("Ferrari"), o nosso poste pesado, bruto e concretizador, um cigano com cabelos compridos, um pouco como o Joe o Índio dos desenhos animados do Tom Sawyer.

Estou num parque de estacionamento de um hipermercado à entrada da Covilhã. Joga-se um torneio de streetball. Lesiono-me no primeiro minuto e tenho de jogar o resto do torneio ao pé-coxinho - ainda assim, chegamos às meias-finais. A nossa equipa chama-se "Los Esporritos", depois adulterada para "Sportitos" pelo organizador da prova. Durante essa tarde apanho um escaldão, fico desidratado, marco um ou dois pontos de belo efeito, levo um bloqueio violentíssimo do mítico "Macaco" (jogador do Tortosendo), chateio-me com JM devido a pensos rápidos, ganho uma T-shirt.

Estou na Covilhã outra vez. Sou a arma secreta de Repolho, o seleccionador distrital. Jogar na selecção é interessante porque tens de passar a bola aos mesmos gajos que tentas esmagar no resto do ano. Mais interessante ainda, tens de os abraçar quando marcas pontos, e de os ver nus quando estás a tomar banho. Dão-me o número 10 porque Diogo ("Monguito") ficou com o meu preferido 8. Ainda assim vê-se que Repolho percebe de basquetebol. Decide apostar em mim para marcar o endiabrado base de Santarém. Apenas aguento dez minutos antes de cair de exaustão e pedir susbtituição, mas durante esse tempo o filho da mãe não marca um ponto.

Estou na Guarda outra vez. Flores ("Flowers"), o treinador interino, esquece-se que eu estou no banco. Quando lhe vou perguntar se vou jogar ou não diz-me "Ai estás aqui?". Jogo cerca de quarenta segundos. A estrela do desafio é Jorge ("Vitesse"), um pequeno grande jogador que soube remar contra a maré. A viagem de volta ao Fundão é triste. Se levantarmos os tapetes da carrinha podemos ver o asfalto. Se não segurarmos a carrinha com uns quantos paralelos depois de a estacionar, nada nos garante que ela lá continue quando voltarmos.

Estou no Fundão outra vez. Miranda ("Pauliteiro") é um treinador que não acredita em mim e passo a época quase toda no banco. Pela segunda vez na história desta 'golden generation' do basket fundanense, estamos prestes a ganhar à Covilhã. Ricardo ("Galinha") tenta um triplo, falha, e Miranda profere o maior e mais intenso chorrilho de asneiras que ouvi em toda a minha vida. As raparigas do basket feminino estão todas na bancada a ver-nos, provavelmente a escolher namorados. Eu estou apenas no banco. Nos balneários tenho de lamber a sola da sapatilha de Adriano, devido a uma aposta parva que fiz durante o calor do jogo. Quando me olho no espelho, todos à minha volta a festejar no meio do vapor dos duches, a minha língua está verde.

Estou na Covilhã, quer dizer, estou na estação do Tortosendo à espera do comboio. Estamos sentados ao sol, a estação deserta. Comemos sandes e bebemos sumos de pacote. Pomos moedas na linha do comboio. JM está por lá, também Maia, também Marco ("Rato"). Marco inventou-me duas alcunhas, e se forem ao Fundão elas ainda devem soar familiares a alguns ouvidos: "Balão" e "Esgalhado". Durante um ano chamavam-me habitualmente Balão, uma alcunha que nunca percebi mas que não discutia porque a anterior era "Coninhas" (graças aos meus primos mais velhos). O nome "Esgalhado" vem do grande jogador dos sub-23 João Esgalhado, um portento do basket que marcava que se fartava e fazia sexo com a namorada nos balneários. Eu não tinha nada a ver com o João Esgalhado, mas ele impressionava-me.

Estou na Covilhã, agora sim, e Repolho lança-me no jogo para evitar uma derrota por mais de cem pontos contra a selecção da Madeira. Faço uma falta feia, sou avisado pelo árbitro. Mais tarde recebo uma medalha de melhor marcador de lances livres do torneio. Os tempos da selecção foram muito bons. Catiqui acabou por ser afastado, mas foi bom jogar com os covilhanenses Miguel, Eduardo (tinha montes de pelos nas pernas) e Adónis (não é alcunha). No caminho para o Fundão a carrinha mais estafada das Beiras pára para deixar Diogo "Monguito" e Rui "Monga" no Tortosendo ("Mongatótólândia").

Estou no Fundão, por fim. Quer dizer, estou no início. É o meu primeiro ano no basket e Bento, um jogador carismático e que veste uma camisola oficial dos Lakers, espera por mim no balneário para me dar mais uma sova. A única coisa que me impede de ser obliterado pela sua fúria incompreensível é o facto de ser primo de duas lendas do basket do Fundão: Mokas e Mini-mokas. E eu nem sei como continuava a ir duas, três vezes por semana aos treinos, com todas aquelas coisas menos boas que me lá esperavam. Talvez tenha sido o JM, que eu adorava. Talvez tenha sido Repolho, que na altura já confiava em mim. Ou talvez tenha sido a premonição de que eu e aquele clube um dia acabaríamos por, de uma forma estranha, fazer parte da história um do outro.


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