Lx
Ela costumava aparecer em minha casa aos domingos de manhã. Trazia sacos de roupa suja. Isso foi quando eu ainda vivia em Benfica.
Saíamos a passear para as ruas perto do cemitério. Eu não comprava flores, comprava fruta. Sentávamo-nos nos parques de Benfica a ver os miúdos a jogar futebol e as mulheres a estender roupa. Apanhávamos sol. Falávamos alemão. Depois voltávamos para casa.
Eu cozinhava um almoço, comíamos em silêncio - eu a ver as notícias na televisão, ela a olhar ora para mim ora para o prato. Depois eu lavava a loiça e ela deitava-se no sofá da sala. Descalçava-se, cortava o som à televisão. Quando eu voltava à sala, a limpar as mãos às calças de trazer por casa, ela estava em posição fetal no meu sofá a dormir. Depois eu acordava-a e ela voltava ao emprego, que nessa altura era para os lados do Parque das Nações e consistia em acompanhar turistas holandeses.
O meu último ano da faculdade: os meus amigos estavam ou em Paris, ou com as namoradas, ou a falar com raparigas que depois se tornavam suas namoradas. As minhas amigas estavam demasiado ocupadas a pensar em namorados (categoria abstracta). Passava dias inteiros no cinema: Cinemateca na Rua Castilho, Palácio Foz nos Restauradores, Cine-222 e Monumental no Saldanha, Biblioteca-Museu República e Resistência, Quarteto, King, Cidade Universitária, eu corria aquela merda toda. Via tudo: Frenzy (de Hitchcock), Johnny Guitar, Alexander Nevskii, Solaris (de Tarkovsky), 2001 Odisseia no Espaço, Apocalypse Now Redux - tudo o que me levasse para sítios diferentes. Via filmes indianos sem tradução, via ciclos do Woody Allen, ciclos do Stanley Kubrick. Numa sessão vi o Camacho Costa semanas antes de ele morrer. Na maior parte das sessões eu era uma das únicas cinco pessoas na sala. Normalmente escolhia os filmes mais longos, deixava-me por lá ficar no escuro.
E não podia ir à faculdade devido a uns sarilhos em que nos tínhamos lá metido, coisas que metiam dinheiro e influências e das quais não quero falar agora. A Carris tinha substituído os CTT no lugar de "minha empresa pública favorita". Fartava-me de andar, visitava galerias obscuras para apresentar portfolios que não eram meus e nenhuma delas me aceitava; visitava museus e passava mais tempo na casa de banho dos museus do que propriamente a apreciar a colecção. Dava por mim no Campo de Santana, depois na Graça, depois nas ruas à volta do Castelo, depois em Campolide, depois em Campo de Ourique. A certa altura estava em frente da mesquita de S. Sebastião a ler e reler uma mensagem escrita de telemóvel que tinha recebido meses antes. Outras vezes ia parar a Santos e as ruas ainda cheiravam a cerveja, os passeios juncados de copos vazios. Cruzava para a frente e para trás a linha do comboio que separa a 24 de Julho do porto de Lisboa, o dia encaminhava-se para o fim, voltava para casa.
E sempre que telefonava os meus amigos estavam ou deprimidos ou inseguros, e eu devo ter parecido uma rocha no meio daquele temporal todo porque, não sei como, distribuía conselhos sábios para aqui e para ali - era a minha forma de dizer que estava vivo. Um dia (acho que foi o dia dos meus anos) entrei na Igreja da Madalena e depois de algum tempo pareceu-me que as luzes tinham piscado e eu pensei que Deus me estava a tentar dizer algo. Nesse dia, à medida que a manhã avançava, eu ia caminhando - Sé, São Vicente, Panteão, Alfama (onde um dia tínhamos encontrado um caixote cheio de fotografias antigas), Sta. Apolónia, e estava farto outra vez e voltava para casa. Estava sempre a voltar para casa.
De modo que quando ela me aparecia em casa nos domingos de manhã eu não tinha muito para lhe dizer e por isso íamos passear em Benfica - as ruas do Lobo Antunes, as primeiras páginas dos jornais desportivos, as flores junto ao cemitério que eu não comprava, as oliveiras calcinadas nos jardins, destroços de ferro, eucaliptos, casas e famílias, os passeios cobertos de merda. Noutras alturas, eu estava obcecado com fotografias e levava-a aos mercados sujos e a pequenos monumentos suburbanos de segunda, e por vezes à noite eu ia para as ruas vazias de Benfica e a polícia vinha e ameaçava-me a mim e ao modelo, despido, no chão, que eu fotografava com um misto de medo e gula.
E por isso não admira que Lisboa esteja povoada de fantasmas da minha autoria, pessoas meio mortas meio vivas que ora preservo ora enterro, pessoas que falam muitas línguas e que parece que nunca me ouvem, seres, entidades, ideias apenas que eu sustentava e carregava às costas naquelas manhãs e tardes em que lentamente aprendia a olhar. A Câmara Municipal construia jardins e abria espaços e eu, obediente, ia ocupando, dando uso, gastando e gastando-me. E era incrível a rapidez com que me esquecia dos passos que dava, incrível a tentação de repetir os mesmos caminhos uma e outra vez.
Saíamos a passear para as ruas perto do cemitério. Eu não comprava flores, comprava fruta. Sentávamo-nos nos parques de Benfica a ver os miúdos a jogar futebol e as mulheres a estender roupa. Apanhávamos sol. Falávamos alemão. Depois voltávamos para casa.
Eu cozinhava um almoço, comíamos em silêncio - eu a ver as notícias na televisão, ela a olhar ora para mim ora para o prato. Depois eu lavava a loiça e ela deitava-se no sofá da sala. Descalçava-se, cortava o som à televisão. Quando eu voltava à sala, a limpar as mãos às calças de trazer por casa, ela estava em posição fetal no meu sofá a dormir. Depois eu acordava-a e ela voltava ao emprego, que nessa altura era para os lados do Parque das Nações e consistia em acompanhar turistas holandeses.
O meu último ano da faculdade: os meus amigos estavam ou em Paris, ou com as namoradas, ou a falar com raparigas que depois se tornavam suas namoradas. As minhas amigas estavam demasiado ocupadas a pensar em namorados (categoria abstracta). Passava dias inteiros no cinema: Cinemateca na Rua Castilho, Palácio Foz nos Restauradores, Cine-222 e Monumental no Saldanha, Biblioteca-Museu República e Resistência, Quarteto, King, Cidade Universitária, eu corria aquela merda toda. Via tudo: Frenzy (de Hitchcock), Johnny Guitar, Alexander Nevskii, Solaris (de Tarkovsky), 2001 Odisseia no Espaço, Apocalypse Now Redux - tudo o que me levasse para sítios diferentes. Via filmes indianos sem tradução, via ciclos do Woody Allen, ciclos do Stanley Kubrick. Numa sessão vi o Camacho Costa semanas antes de ele morrer. Na maior parte das sessões eu era uma das únicas cinco pessoas na sala. Normalmente escolhia os filmes mais longos, deixava-me por lá ficar no escuro.
E não podia ir à faculdade devido a uns sarilhos em que nos tínhamos lá metido, coisas que metiam dinheiro e influências e das quais não quero falar agora. A Carris tinha substituído os CTT no lugar de "minha empresa pública favorita". Fartava-me de andar, visitava galerias obscuras para apresentar portfolios que não eram meus e nenhuma delas me aceitava; visitava museus e passava mais tempo na casa de banho dos museus do que propriamente a apreciar a colecção. Dava por mim no Campo de Santana, depois na Graça, depois nas ruas à volta do Castelo, depois em Campolide, depois em Campo de Ourique. A certa altura estava em frente da mesquita de S. Sebastião a ler e reler uma mensagem escrita de telemóvel que tinha recebido meses antes. Outras vezes ia parar a Santos e as ruas ainda cheiravam a cerveja, os passeios juncados de copos vazios. Cruzava para a frente e para trás a linha do comboio que separa a 24 de Julho do porto de Lisboa, o dia encaminhava-se para o fim, voltava para casa.
E sempre que telefonava os meus amigos estavam ou deprimidos ou inseguros, e eu devo ter parecido uma rocha no meio daquele temporal todo porque, não sei como, distribuía conselhos sábios para aqui e para ali - era a minha forma de dizer que estava vivo. Um dia (acho que foi o dia dos meus anos) entrei na Igreja da Madalena e depois de algum tempo pareceu-me que as luzes tinham piscado e eu pensei que Deus me estava a tentar dizer algo. Nesse dia, à medida que a manhã avançava, eu ia caminhando - Sé, São Vicente, Panteão, Alfama (onde um dia tínhamos encontrado um caixote cheio de fotografias antigas), Sta. Apolónia, e estava farto outra vez e voltava para casa. Estava sempre a voltar para casa.
De modo que quando ela me aparecia em casa nos domingos de manhã eu não tinha muito para lhe dizer e por isso íamos passear em Benfica - as ruas do Lobo Antunes, as primeiras páginas dos jornais desportivos, as flores junto ao cemitério que eu não comprava, as oliveiras calcinadas nos jardins, destroços de ferro, eucaliptos, casas e famílias, os passeios cobertos de merda. Noutras alturas, eu estava obcecado com fotografias e levava-a aos mercados sujos e a pequenos monumentos suburbanos de segunda, e por vezes à noite eu ia para as ruas vazias de Benfica e a polícia vinha e ameaçava-me a mim e ao modelo, despido, no chão, que eu fotografava com um misto de medo e gula.
E por isso não admira que Lisboa esteja povoada de fantasmas da minha autoria, pessoas meio mortas meio vivas que ora preservo ora enterro, pessoas que falam muitas línguas e que parece que nunca me ouvem, seres, entidades, ideias apenas que eu sustentava e carregava às costas naquelas manhãs e tardes em que lentamente aprendia a olhar. A Câmara Municipal construia jardins e abria espaços e eu, obediente, ia ocupando, dando uso, gastando e gastando-me. E era incrível a rapidez com que me esquecia dos passos que dava, incrível a tentação de repetir os mesmos caminhos uma e outra vez.
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