sexta-feira, julho 30, 2004

My Love Life (2/2) (revisto)

(continuação)

Estamos alienados, portanto. Perdidos, impedidos de encontrar um sentido às nossas vidas. E o que fazem aqueles que não são pais, nem pedagogos, aqueles que não têm contacto directo, diário, sustentado, com crianças?  Para onde devemos orientar os nossos esforços? Morrissey decidiu, por volta dos seus 30 anos, que ia ser 'The End of the Family Line' (álbum ‘Kill Uncle’, EMI, 1991):

'No baby pulled screaming  [NB sugere insatisfação por parte do bébé em nascer] / Out into this seething whirl / By chance or whim / (Or even love?)'

De facto, o percurso de Morrissey é marcado por referências bastante amargas em relação às crianças, e principalmente em relação à violência a que as crianças são sujeitas no mundo confuso dos adultos. Nesse capítulo, veja-se o perturbante 'This Night Has Opened My Eyes', em que um recém-nascido é enrolado num News of the World e atirado ao rio (compilação dos The Smiths, ‘Louder than Bombs’, Warner, 1993). Veja-se 'November Spawned a Monster', sobre crianças indesejadas – uma música em que o título diz tudo (compilação ‘Bona Drag’, EMI, 1990). Veja-se 'The Lazy Sunbathers', em que, enquanto as crianças levam com obuzes, adultos apanham banhos de sol (álbum 'Vauxhall and I', EMI, 1994). Veja-se, também, 'Suffer Little Children', com o exército de crianças fantasma (esta música irá inspirar o meu post do dia sete de Agosto) (álbum homónimo dos The Smiths, Warner, 1984).

Qual é a resposta que Morrissey dá àqueles que, pelas mais variadas razões, não se sentem em condições de trazer crianças ao mundo e/ou educá-las? A atenção deve claramente virar-se para o outro pólo do eixo identificado por Whitney Houston: o amor-próprio. As referências de Morrissey ao amor-próprio são incontáveis e a sua posição demasiado complexa para ser analisada em detalhe aqui. No entanto, é importante dizer que, para Morrissey, o amor-próprio não é o impulso de ‘gostar de si’, é antes o resultado da constatação da finitude, fragilidade e insignificância da vida. Isto não deve levar ao desespero (embora Morrissey seja ambíguo neste ponto), mas antes a um impulso criativo, desapegado, que tenta manter uma réstia de encanto na vida:

‘Make no mistake my friend / Your pointless life will end / But before you go / Can you look at the truth? / You have a lovely singing voice / (...) / So sing your life’ (‘Sing Your Life’, álbum ‘Kill Uncle’, EMI, 1991)

‘Cantar a vida’ não é exibicionismo, não é mostrar aos outros como isto é fixe/doloroso (riscar o que não interessa). Cantar a vida é o resultado de uma postura crítica, de dúvida, é o resultado de uma insatisfação, mas é também um sinal de esperança - porque se baseia nas inúmeras potencialidades do que é humano. A nossa vida, actualmente sem valor, actualmente vítima de um sistema que nos alienou, pode encontrar na escrita e na música uma réstia de liberdade (os autores da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno e Herbert Marcuse, encontravam exactamente na arte o último repositório de perspectivas emancipatórias).

Esta é a génese incoerente, desconexa, trágico-cómica de ‘My Love Life’. É que, não sei se estão a ver, a minha vida amorosa não é bem minha. É mais de todos aqueles que sofreram, e de todos aqueles que vão sofrer. O meu amor está misturado com o amor de todas as outras pessoas no enorme caudal de sofrimento em que a humanidade se encontra. Vou mostrar estas ‘canções’ sobre a minha vida até que se me torne insuportável a ideia de que estou a contaminar as pessoas com o que escrevo. Afinal, e ainda que não me esteja a dirigir a crianças, não quero acabar no fundo do mar com uma mó atada ao pescoço.

Às vezes quando estou num pub com amigos bebo cervejas e tenho de ir à casa de banho. Quando estou a lavar as mãos no final, e especialmente quando estou ligeiramente embriagado, atinge-me em cheio na cara um enorme pavor de morrer. Tenho de me agarrar para não cair no chão com esta vertigem fria. Quando recupero, volto para a mesa e minutos depois já estou a rir-me de novo, com outra cerveja na mão.

Julgo que seria uma pena se a nossa caminhada pelo mundo terminasse sem que falássemos destas coisas todas que se passam na vida.



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