quinta-feira, julho 08, 2004

Córdoba e eu

De onde eu vejo, o deserto parece não ter fim. Mas eu vejo o deserto apenas da janela fumada do comboio e acordo sobressaltado com uma voz a sussurrar-me ao ouvido 'Descontrai, é apenas a Andaluzia', e não consigo descobrir quem me disse isto porque a carruagem não tem ninguém a não ser eu - jornais desfiados espalhados pelo chão e o ar-condicionado fora de controlo porque estou a tremer e vapor sai da minha boca quando respiro. E lá fora apenas os montes da Andaluzia e aquele deserto e as árvores calcinadas, a uma hora de Córdoba, e tudo na paisagem está desfocado pelas ondas de calor que emergem do chão e eu estou a pensar em choque térmico, estou a pensar na cara suada e barbuda de um ferreiro do bazaar de Udaipur, depois estou a pensar em corpos nus cobertos de cachecóis de muitas cores. Estou a pensar em camisas Gap, em morcegos moribundos, no David Beckham, e basicamente estou a deslizar para dentro e fora de sonhos e a quinze minutos de Córdoba eu começo a sentir um ligeiro ataque de pânico e, cravando as unhas nos abdominais tentando não sei porquê segurar-me, eu começo a rever mentalmente o que se vai passar nos próximos seis dias e meio.

Dentro de dois dias, seis horas e treze minutos eu vou adquirir mais um vodka numa taberna de uma rua escondida numa cidade esquecida a duas horas de Córdoba, e vou pensar distraídamente porque raio estou a beber vodka numa taberna.
Dentro de dezasseis horas e quarenta minutos eu vou espreitar sobre um muro de um terraço e vou ver um cão parecido com um feto gordo a tentar matar-se, olhando-me pelo canto do olho e odiando-me, e eu vou provocar aquele cão e odiá-lo de volta e incitá-lo a afogar-se na corda com mais força.
Dentro de três dias, três horas e trinta e quatro minutos eu vou estar num jardim em Priego de Córdoba a olhar o deserto e as árvores que começam a descansar de mais um dia de fogo, e vou cobrir uma folha branca com vários tons de castanho e com riscos furiosos de preto, e vou basicamente amuar enquanto ela desenha qualquer coisa equilibrada e saudável a trinta metros de mim.
Dentro de três horas e três minutos eu vou estar deitado na cama, cheio de vontade de mudar de roupa, enquanto ela me tira fotografias e, na rua, uma procissão interminável de lambretas passa.
Dentro de vinte horas eu estou deitado no sofá em jejum a ler um livro sobre dragões no qual não me consigo concentrar, e depois de adormecer outra vez e sonhar que estou dentro do livro 'Glamorama' de Bret Easton Ellis, depois de acordar suado e em pânico oitenta minutos depois ela está sentada em cima de mim e eu estou a tentar tirar-lhe o soutien, beijar-lhe os mamilos frios.
Dentro de dois dias, oito horas e vinte e três minutos e dentro de três dias, sete horas e dezasseis minutos nós vamos tentar fazer amor, o que não resulta porque eu estou demasiado bêbado e ela "não pode", respectivamente. Antes destas ocorrências nós vamos estar a comer coxas de rã num restaurante, apanhando o ar fresco da noite, junto de gente normal.
Dentro de quatro dias, duas horas e um minuto, na esplanada do Café Rigolet em Málaga, um súbito estampido vai soar numa mochila Eastpak, seguido de uma explosão rápida e avassaladora. Uma rapariga japonesa, os tímpanos rebentados e o choque na cara cravejada de vidros, vai tentar lidar simultaneamente com dois factos: ambos os seus braços foram arrancados à altura do cotovelo e tudo o que resta do seu noivo é um torso, um braço e duas pernas ainda sentadas na cadeira à sua frente. Depois de um silêncio incrédulo de alguns segundos, gritos vão começar num raio de cinquenta metros à volta da cratera onde costumava ser o Café Rigolet em Málaga.
Dentro de quatro dias, uma hora e quarenta e oito minutos eu vou estar na abertura de uma exposição de arte, ensonado e no geral fora de mim, e vou passar os seguintes cinquenta e três minutos a ver desenhos de mulheres nos quais os órgãos genitais foram marcados a vermelho. Canapés vão ser fornecidos, gente de Madrid vai lá estar, boleias vão ser pedidas e concedidas.
Dentro de quatro dias, vinte horas e não sei quantos minutos eu vou estar no terminal de comboios de Córdoba a falar ao telefone com a minha mãe. Vou tentar lembrar-me das minhas deixas enquanto olho distraídamente para: a) uma fatia de bolo de chocolate a derreter numa mesa da cafetaria, b) ela a passear em frente a uma montra, subitamente bela, c) alguém a segurar por uma trela o que me parece ser um lobo.
Dentro de cinco dias, não sei quantas horas e não sei quantos minutos eu vou acompanhá-la enquanto ela experimenta vestidos de noite, e vou procurar em várias lojas toiros de plástico e vou ver quinze variedades de toiros de plástico e não vou comprar nenhuma, acabando por me decidir por anjos de plástico. A empresa de catering que apoia as filmagens vai fornecer torradas e nós vamos comê-las com tomate e azeite. Arte vai continuar a ser vista, apreciada, comentada.
Dentro de cinco dias, três horas e quinze minutos, depois de uma complexa sequência de autorizações, mensagens de código e sinais, um argelino a correr vai ser abatido com uma espingarda sniper Tippmann A-5, num bairro nos arredores de Barcelona.

E pronto. Dentro de dezasseis minutos eu vou aproximar-me da porta do comboio e vou olhar em volta e durante alguns segundos vou perder o controlo sobre os meus pensamentos e vou olhar para trás para o realizador (com o qual tive uma discussão acalorada no bar do comboio, à saída de Madrid) e ele vai fazer um movimento impaciente com a mão, querendo obviamente dizer com isso que não posso ficar ali parado e tenho de seguir, seguir, seguir.


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