sexta-feira, julho 02, 2004

A Vida no Rio

Uma tarde, acordei no silêncio. Tinha adormecido sem dar por isso na cafetaria do barco que me levava Orinoco acima, numa viagem que terá sido provavelmente um dos momentos decisivos da minha vida (depois disso, parece-me que só encontrava estranhos, mortos, moribundos em todo o lado). Eu acordei naquele banco junto à janela e estava sozinho no silêncio da tarde e lá fora o Orinoco estava cor de lama, largo como uma milha - e onde estava toda a gente? - e por momentos pensei que era a única pessoa no barco, e encolhi os ombros, os olhos pequeninos, limpando a boca numa manga da t-shirt.

A vida no rio era assim. Tinha trazido comigo uns pequenos binóculos e por vezes ficava a olhar as margens do grande rio, e os índios nas margens amaldiçoavam o nosso barco e alguns vinham em canoas até meio caminho com as crianças e os velhos, para verem de perto os europeus arrogantes que voltavam e continuavam a voltar. Alguém me tentou inutilmente ensinar como observar e distinguir espécies de pássaros, e ao pôr do sol lá estava eu na proa do barco a tentar acompanhar aqueles voos rápidos, o que me chateava passados poucos minutos. Costumava ter conversas com um antropólogo que estava a bordo e que, no fundo, nos odiava a todos por não sermos nativos daquele rio - e eu ficava a ouvir as conversas dele durante as longas tardes e tomava notas no meu bloco e ele sentia-se estimulado pelo meu interesse e tirava o boné, tirava os óculos, limpava o suor da cabeça calva, continuava a falar.

E metade das raparigas a bordo andava com piolhos e por isso lavavam o cabelo em vinagre e usavam um lenço a toda a hora. Alguém me convenceu a tomar umas lições de dança a bordo, e de manhã durante uma hora eu aprendia merengue, salsa, tambor, coisas assim. As músicas eram sempre as mesmas. O barco abanava muito e era difícil manter o equilíbrio. Por vezes ficava mal-disposto. Costumava dançar com uma rapariga espanhola chamada Luna. Cheguei a aprender alguns passos de sevilhanas, e praticava com duas enfermeiras venezuelanas que me chamavam Josué. Luna e Josué.

E a tripulação andava basicamente a apropriar-se de roupas dos passageiros que apanhavam a secar ao sol - um dia fomos dar com uma pequena cabina cheia de soutiens e cuecas e camisolas porque um dos marinheiros cometeu a imprudência de vestir uma t-shirt que tinha roubado. Julgo que a mim não me roubaram nada, mas, de qualquer maneira, metade do que ocorria naquele barco passava-me ao lado. Lembro-me em especial das noites passadas no deck a beber ice-tea e a comer oreos atrás de oreos - lembro-me do rio à noite, iluminado fugazmente pelas luzes do barco, castanho e cheio de plantas estranhas - lembro-me de algumas conversas românticas sobre vida e separação e essas coisas - lembro-me de cortar sem cuidado o meu próprio cabelo e de o atirar ao rio - lembro-me que não me importava. Pensava em iguanas e anacondas e dormia como um anjo. Falei com duas ou três pessoas que eram ou conheciam alguém que era vampiro.

Os duches eram assim. O capitão anunciava num megafone que ia haver duche e os passageiros que desejavam deslocavam-se em fatos de banho para o convés da popa. E esperavam. Depois aparecia o capitão com uma mangueira e ligava a mangueira e as pessoas começavam todas a esfregar-se com shampoo e sabonete e o capitão ia movendo a mangueira sobre a multidão para molhar toda a gente - braços no ar quando precisavam urgentemente de água para tirar sabão dos olhos ou coisas assim - e por isso durante o duche havia sempre grande gritaria e algumas pessoas aproveitavam para lavar roupa (o capitão sugerira bater com a roupa no chão depois de a esfregar, o que resultava lindamente) - e tudo aquilo era divertido e ficávamos no fim a secar ao sol, ofegantes, como gatos.

Tenho uma fotografia que tirei, num dos últimos dias, com uma rapariga de Palencia de quem tenho muitas saudades. Acabámos por nos tornar bons amigos. Na fotografia estamos simplesmente encostados num corrimão e o sol ilumina de lado as nossas caras, e sempre que me lembro da vida no rio lembro-me dessa fotografia. Não há grande história a contar. Foi tirada após o duche, creio, porque nela tenho um aspecto lavado e saudável. Por vezes, os meus sorrisos nas fotografias surpreendem-me, e nesse momento eu estava muito feliz. A vida no rio foi boa.

E havia mãos dadas ao luar e beijinhos sorrateiros, à noite, nos recantos mais reservados, e raparigas davam-me tampas de manhã, nas mesas da cafetaria, entre chávenas de café com leite e aguarelas de peixes e folhas - e eu adormecia com demasiada facilidade naquele barco e à noite tinha de afastar pedaços de frango e confettis para estender o saco-cama no chão. Tinha um pequeno papagaio de madeira vindo de não sei donde e que não sei porquê achava parecido com o John Lennon, e sempre que o dizia a alguém as pessoas confundiam sempre o John Lennon com o Elton John e eu dizia ai não, o Elton John não. Deus me livre. O meu papagaio é o John Lennon.


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