quinta-feira, março 17, 2005

Seis de trinta e três

Ontem lembrei-me do dia em que entreguei a minha tese. Talvez tenha sido por ter voltado a ouvir a Rosie Thomas: ela trouxe à minha memória aqueles dias de sol morno, sem nuvens, em que eu descia uma colina para chegar a casa, que se encontrava mesmo junto ao mar.

Nesse Verão, eu vivia num quarto com vista para essa colina. Para ver o mar eu precisava de ir à cozinha, que partilhava com um rapaz chinês que não via a mãe há dois anos, e com um rapaz inglês que tinha a mãe doente algures na Cornualha. O meu quarto era bastante sossegado: tinha um excesso de moscas devido às pombas que se empoleiravam num telhado em frente, mas em compensação, como vivia mesmo ao lado de um pequeno hotel familiar, tinha todos os dias (especialmente quando o vento estava de feição) o cheiro reconfortante do chá com leite acabado de fazer. Alguém tinha deixado uma pequena tábua para manter a janela aberta – nessa tábua tinham escrito que a janela tinha mais de cem anos, o que era um pouco difícil de acreditar. Às vezes sentava-me à janela com os pés de fora, apanhando o sol da tarde e o vento frio que vinha do Penglais Park.

Nos dias de maior calor, saía de casa e andava uma vintena de passos até os meus pés tocarem o Mar da Irlanda. Deitava-me naquela praia de pedras negras, e deixava que o sol fraco acariciasse a minha pele manchada, irregular, cheia de pêlos. Por vezes, punha uns óculos especiais e dava umas quantas braçadas naquela água gelada e turva: diziam que as fezes do gado e os minerais nocivos das minas eram arrastados pela chuva até ao mar. A minha pele começava a reagir, tingindo-se de vermelho em pequenos aglomerados junto aos meus mamilos, ao meu pescoço. Voltava para casa, os pés abraçados por minúsculas pedras negras que deixavam um rasto até à minha cama.

Eu tinha começado a dormir com um bloco de notas mesmo ao lado da cama. Costumava acordar várias vezes durante a noite para escrever frases e palavras confusas, supostamente ideias indispensáveis para o desenrolar dos meus argumentos. Acho que o meu cérebro estava a expectorar. De manhã acordava desfeito, lavava a cara, comia cereais de chocolate com sabor a plástico, olhava o mar durante alguns minutos, vestia a velha t-shirt e os velhos calções, começava a trabalhar.

Normalmente, conseguia ter as coisas terminadas antes de jantar. Tinha uma vizinha botswanesa que costumava aparecer com alguma frequência: ela lavava as suas roupas duas ou três vezes por semana, e da minha janela eu via-a com o cesto a dirigir-se para a lavandaria. Tomávamos chá na cozinha, falávamos de várias coisas, víamos episódios do Fawlty Towers, ela contava-me do seu flatmate psicopata que chegava à cozinha e lhe dizia “estás com o período, não estás?, consigo cheirar o teu período” - coisas assim.

Outras vezes, quando ela não vinha a visitar-me, eu costumava sair de casa ao pôr-do-sol e ia passear e ouvir música. Ouvia Rosie Thomas, Sun Kil Moon, Red House Painters, Nick Drake, The Smiths, Elliott Smith, Josh Rouse. Adorava os beijos do sol na minha cara. Calhava deambular pelas ruas já escuras quando começava a chover; eu trazia uma camisola com capuz e, na minha mente, tornava-me mais um fantasma daquelas terras. Caminhava até à estação, até St. Michael’s, até à Escola de Artes, até aos hipermercados. Percorria a North Parade, descia a Loveden Road, a chuva caía. Gostava de ver os nomes misteriosos que as pessoas davam às casas: Tremor, Glaenwern, Finmoor, tantos que me esqueci mas que na altura me maravilhavam.

Minhas memórias são como uma pedra que eu levanto, para encontrar um mundo de vida e de terra húmida em baixo. A minha mãe, de quem eu gosto muito embora não o diga, dizia-me que devia levantar as pedras com cuidado. Lacraus, coisas assim. Por isso eu sempre me habituei a levantar as pedras apenas para dar uma espreitadela; no entanto, isso levou-me, por insatisfação e tendência para o abismo, a levantar muito mais pedras do que as outras pessoas.

Ontem, quando escutava Rosie Thomas, lembrei-me do dia em que entreguei a tese. Aquilo era já a terceira versão do texto, e eu tinha chegado a uma altura em que sentia que não conseguia fazer melhor. Quase esperava o som de trombetas ou uma orquestra a tocar enquanto entregava, mas tudo foi rápido e impessoal. Recebi um canto de folha com um carimbo. Uma espécie de comprovativo. Guardei-o na minha mala e saí. Estava um daqueles dias de sol esplendoroso, mas soprava uma brisa fria e subitamente senti-me sozinho, muito sozinho. Caminhei até uma pequena clareira orlada de árvores altas, na parte oeste do campus. Sentei-me numa sombra e senti frio. Deixei-me ficar sentado e senti a relva húmida debaixo das minhas nádegas. Fechei os olhos. Tinha um monte de coisas pendentes, assuntos que, imerso no trabalho, tinha adiado mas que agora teria de enfrentar. Não havia desculpas e eu tinha de tomar decisões, lutar pela minha posição e pela minha vantagem competitiva. Em suma, tinha de começar a “fazer por mim”. Teria de começar por apanhar um avião e voltar a Lisboa.

segunda-feira, março 14, 2005

Cinco de trinta e três

Kid A (EMI: 2000) significou o fim da minha relação com os Radiohead. É necessário que compreendas o que era para mim viver em Lisboa nessa altura. Tenho escrito muito sobre isso, eu sei, mas é preciso que tentes comigo visualizar uma vez mais aquele Inverno em Lisboa, aquelas ruas escorregadias ao fim do dia e aqueles autocarros lotados, e eu a regressar da universidade com o cabelo demasiado comprido – com o sabor da acetona na boca. Preciso que me imagines em Benfica outra vez, sozinho num apartamento cheio de pó e fantasmas e ruídos, preciso que faças isso para que te explique a minha dor ao ouvir pela primeira vez Kid A (EMI: 2000), compreendendo como uma pancada forte na cabeça que os Radiohead já não me pertenciam: tinham-se tornado complexos, tinham avançado, crescido, tinham ficado fartos daquela relação tranquila que mantínhamos os dois. O que eram aquelas vozes distorcidas, aquelas batidas electrónicas, aquela ausência de lirismo? Porquê tudo assim tão súbito? Porquê exactamente naquele momento?

Eu tinha coberto as paredes do meu quarto com fotografias de crianças a chorar, mulheres mastectomizadas, esqueléticos prisioneiros de Dachau. Programava a minha primitiva máquina fotográfica para me tirar fotos sem roupa. O mundo parecia tão confuso quando visto da minha janela: os carros a subir e a descer a Avenida da República Peruana, as gotas de chuva no vidro, o frio que eu sentia em todo o lado - a camada de poeira no chão do quarto na qual se distinguiam as minhas pegadas. Nesse quarto eu tinha pela primeira vez tocado os seios de uma rapariga. E o sexo era para mim um procedimento ritual, uma formalização de violência, dor, dominação – prima nocte, patria potestas, spinta criminosa.

Depois às vezes o sol brilhava aos domingos e a minha mãe vinha ver-me e aquele que tinha sido o meu melhor amigo na infância mostrou-me os Belle & Sebastian – converti-me imediatamente. Também ouvia muito Smashing Pumpkins na altura, Smashing Pumpkins que se tornaram grandes e depois incharam e ficaram balofos e pedantes e eventualmente explodiram como sapos. A rapariga por quem estava «apaixonado» na altura gostava de Smashing Pumpkins também, mas depois os Radiohead lançaram o Kid A (EMI: 2000) e ela adorou e eu compreendi que tudo estava acabado entre nós. Eu arranjei tudo o que havia a arranjar de Belle & Sebastian e preparei-me para um longo Inverno: comecei a escrever poemas, a ir ao cinema sozinho, a passar grandes temporadas fechado em casa a estudar e a consumir pornografia.

E sempre aquele apartamento tão grande, tão vazio. Tudo tão asquerosamente rudimentar. Os tapetes picavam-me os pés, o cotão acumulava-se em bolas que eu tentava agarrar. Pêlos púbicos no chão da casa de banho, bagos de arroz espalhados na cozinha, infiltrações na marquise, um congelador que simplesmente pifou, eu desenvolvi na altura diversas paranóias que incluíam preocupações com o gás ou as luzes ligadas, com aquecedores deixados no seu livre curso de destruição e queima. Era o melhor aluno da turma, por todos admirado pela minha sensatez e bom humor. Amigo dos meus amigos, membro influente de movimentos associativos, eu sangrava pelo nariz, pela boca, pelos dedos, pelo cu.

Kid A (EMI: 2000), um álbum genial e que consagrou os Radiohead como uma das bandas mais influentes do pop-rock no início do século XXI, significou para mim uma traição. Mas, note-se, a traição não foi dos Radiohead. Foi minha. Eu estava demasiado ocupado com a minha vida pequena e com a movimentação regular das peças no meu tabuleiro pequeno, e não acreditei, ou não tive tempo, ou simplesmente deixei as coisas passar. Sinto-me hoje como aquele amante infiel que compreende que o mais ínfimo momento de dúvida oblitera o amor mais profundo. Comprei o seguinte álbum de Radiohead, Amnesiac (EMI: 2001), mas ofereci-o algumas semanas depois ao meu irmão, porque compreendi que já não havia entre mim e os Radiohead uma relação de possessão. Eles tinham feito parte de uma etapa da minha vida, mas ambos tínhamos avançado e tomado caminhos diferentes. Ainda hoje oiço Radiohead, mas é com um pouco de mágoa porque eles já não são meus, já não são eu. Aprendi contudo que é preciso deixar as coisas passar.

Em compensação, tenho os Belle & Sebastian. Esses sim, são meus e eu deles. Tenho também aquelas músicas todas que ouvi quando era mais novo e que fizeram o seu ninho nos recônditos da minha memória: “Lady in Red” de Chris de Burgh, “Nikita” de Elton John, “Don’t Dream It’s Over” dos Crowded House – coisas assim, sem demasiada importância. Gosto especialmente dos grupos dos anos 80 que tiveram um sucesso meteórico e dos quais nunca mais ninguém ouviu falar, cantores como John Waite, Al Stewart, Glenn Medeiros, pessoas que como eu subiram e desceram, deixando apenas farrapos, pechisbeques, memórias embaraçosas – pequenas pistas de tudo e de nada, nas quais alguém um dia poderá ou não reparar.

terça-feira, março 08, 2005

Quatro de trinta e três

“Ontem pareceu-me ver numa fotografia aquela que seria a tua cara se por ti tivessem passado cinco anos, como passaram – volta para casa.

Eu estava cheio de sacos e coisas por fazer e tinham passado cinco anos e um dia e eu tinha tido tantas, tantas saudades – volta para casa.

Os miúdos que tu não conheceste, os miúdos que entretanto cresceram, saltam dos seus cantos quando eu chego a casa e tudo está no seu lugar, menos tu. E os amigos telefonam-me com planos para sair e eu saio e beijo tanta gente. Cozinho para todos eles como quem navega com a costa à vista. A tua cara nas fotografias de há cinco anos. Volta para casa.

Ontem procurei empregos como se me quisesse despedir, como se quisesse começar uma vida nova. Ontem vi anúncios no jornal como se quisesse ganhar dinheiro, como se o meu dinheiro não fosse suficiente, como se as heranças das pessoas que morreram não bastassem para mim e para os miúdos.

Olho para as minhas mãos. Às vezes paro de escrever e olho para as minhas mãos, estas mãos que acariciaram e bateram. Tu nunca dizias nada das minhas mãos, mas eu tocava-te, dava-te prazer, e depois dava-te dor. E depois eu molhava as mãos, e elas ainda assim envelheciam.

Os miúdos pintam coisas com muitas cores, fazem desenhos do que serias se fosses grafite, cera, feltro, pastel. Os miúdos desenham as tuas saias, as saias que não levaste contigo, as saias que eles não esqueceram. E eu debruço-me e vejo nos desenhos dos miúdos as minhas mãos, com cinco dedos bem contados – as minhas mãos estendendo-se na direcção de uma casa que é mais pequena, uma casa com chaminé, entre os montes, debaixo de um sol com olhos. As minhas mãos nos desenhos dos miúdos como se por mim tivessem passado muitos anos – e tu estás vestida com saias, perto do sol.

Ontem pareceu-me ver numa fotografia a tua cara se por ti tivessem passado cinco anos, se não tivesses morrido. Volta para casa.”

sexta-feira, março 04, 2005

Três de trinta e três

"Vi o João, no domingo passado. Eu tinha ido a Sintra com o Diogo e foi em frente ao Palácio da Vila que eu vi o João, e trocámos um breve olhar de reconhecimento antes que ele desviasse a cara. Eu fiquei subitamente séria e também o João ficou; não nos falámos. Ele ia com uma rapariga; antes de me ter visto, eu já tinha reparado naquele casal e eles pareciam felizes.

Espero que o João esteja feliz. Lembro-me de algumas frases que lhe disse: “Quando nós fizermos amor vai ser como quando tu cantas e tocas guitarra para mim”; “Por minha culpa dois bebés morreram”; “Eu preciso que vocês se dêem bem”; “Um dia vais olhar para ela e dizer-lhe que amas cada milímetro do seu corpo”. Lembro-me também de dizer ao Diogo, uma noite, chorando na cama depois de mais uma discussão: “Eu gostava tanto do João, e agora começo a odiá-lo”. Lembro-me do João a arder em febre na cama, no dia em que abandonámos a casa – todas aquelas coisas que ele andava a tomar na altura. Nunca chegámos a dizer adeus. E lembro-me de como me apaixonei pelo Diogo numa daquelas manhãs de sol em Alcântara – ele a treinar remo com a equipa e eu sentada em frente a uma grande janela sobre o rio, a falar ao telefone. Eu estava sempre a falar ao telefone, mas não tinha telefone próprio. O João fazia os meus telefonemas.

Lembro-me também da Rute, a cabra de Campo de Ourique, e da sua chapeleira e das suas mamas e da forma como tentei juntá-la ao João. Nada correu como eu planeara.

Estávamos tão extraordinariamente lúcidos nessa altura, eu e o Diogo. Estávamos apaixonados, desesperados. Queríamos ter sucesso, queríamos estar juntos. Não tínhamos pais, não tínhamos muito dinheiro. O Diogo ainda nem estava na universidade. Pensávamos que íamos ter um filho.

E o João era uma pessoa tão boa – ou pelo menos assim me pareceu. Estava sozinho em Lisboa e tinha aquele ar perdido dos poetas, dos melancólicos, dos homossexuais. Precisava tanto de carinho, de uma namorada. Tentei ser amiga dele. Passeávamos nos jardins da Gulbenkian e ele falava-me de “sexo pago em sacos-cama”. Compreendi logo que ele era diferente dos outros.

Tive tantas saudades do João. Agora sei que, pelo menos, ele não está sozinho. Pergunto-me se ainda escreve, pergunto-me o que foi dele. Pergunto-me se ainda pensa em mim, como eu penso nele.

Nos últimos dias antes de deixarmos de viver juntos, planeei muitas vezes uma carta de despedida em que lhe contaria todas as coisas, para que ao ler essa carta ele me fosse tentando compreender – dado que era improvável que voltássemos a ver-nos. Pensei até em ir falar-lhe - sentar-me junto à cabeceira da cama onde ele suava e delirava, talvez afagar-lhe a testa, a mão adormecida. Tantas coisas ficaram por explicar. Talvez as coisas tivessem resultado com um pouco mais de tempo e calma. Perdemo-nos um ao outro.

Isto sou eu, quase quatro anos depois. Porque na altura eu sei que estava entusiasmada. Um pouco magoada com o desenlace, e com a imagem do João na cama, incapaz de fazer fosse o que fosse – todas aquelas coisas más que ele consumia na altura. Mas foi com alívio que me vi fora de Benfica, e nem vacilei ao abrir a porta daquele sótão na Praça da Alegria onde eu e o Diogo viveríamos nos anos seguintes.


Sim: tropecei umas quantas vezes e deixei cair algumas coisas durante a mudança. Mas estava feliz, eu sei que estava feliz: íamos começar uma vida nova numa casa velha."

terça-feira, março 01, 2005

Dois de trinta e três

"Olha e vê a porta que se entreabre lentamente – e saberás o que tenho andado a fazer. Olha, e ainda que não vejas nada de imediato, espera e deixa a porta entreabrir-se o suficiente para a luz entrar. Tem paciência. É que o que eu tenho andado a fazer não sou eu, não é meu. Vê, no entanto, como um sorriso se forma arduamente na minha cara: o sorriso cresce por entre a presença dos anos que por mim já passaram. Olha outra vez – agora: vê a forma pequena que se arrasta na nossa direcção. Como ela está compenetrada na tarefa de rastejar até nós! Como toda a sua vida se resume a atravessar a ombreira da porta, os olhos focados no chão em frente, e como não há mais nada no seu jovem pensamento do que a procura do sítio onde os seus membros se poderão apoiar para avançar!

Apresento-te a Inês. Não te deixes enganar pela sua tez miscigenada e pelos seus curtos cabelos encarapinhados: ela é minha filha, ainda que tanto eu como a sua mãe sejamos loiros. Não sei como aconteceu: um dia ela estava grávida, e noutro dia a Inês estava viva. A mãe da Inês diz que eu sou o pai da Inês, e quem sou eu para discordar? Tenho a certeza que vais compreender que não é preciso compreender de todo. Coisas destas não têm explicação. São um pouco como o amor que eu nunca senti por nada.

Nestes dias eu acordo cedo e o dia é todo meu e da Inês. Procuro empregos enquanto preparo papas. Provo papas, dou papas, não há empregos, lavo as tigelas das papas, pego ao colo da Inês – faço as coisas que os pais fazem. Nada disto é meu, nem esta casa, mas tenho-me lentamente instalado no meio de estranhos e até já a Inês me reconhece. Ela diz-me (pede-me?) “papa”.

Gosto quando a sua mãozita se agarra a um dos meus dedos que entretanto se tornaram anafados. Gosto quando ela bamboleia as suas pernas fracas quando a seguro, e quando ela ri ao ouvir música. Limpo a baba que escorre da sua boca, dou-lhe um beijo antes de dormir, encomendo-a ao Anjo da Guarda porque ela ainda não sabe e eu tenho medo da morte súbita dos bebés.

A Inês nasceu já há algum tempo. Depois disso, casei-me e divorciei-me. Depois juntei-me. Depois separei-me. Depois apaixonei-me, e depois descobri que me tinha enganado. Neste momento não sei bem qual é o meu estatuto. Estou desempregado e sou dono de casa, embora a casa não seja minha. A mãe da Inês namora com homens e às vezes ela não vem dormir a casa. Eu nunca lhe toco. A mãe da Inês é uma mãe maravilhosa, e não estou a ser irónico. A Inês adora a mãe, e a mãe está sempre presente, exceptuando o tempo para trabalhar e namorar. Eu também estou sempre presente para a Inês, exceptuando o tempo para tomar duche, fazer necessidades.

Tenho suores frios: engordei. Também tenho suores quentes, em especial quando aspiro a casa ou mudo os lençóis ou lavo o chão da casa de banho. Nunca mais escrevi e nunca mais li. Fico mais careca a cada dia que passa. Às vezes fico muito ansioso, mas depois a Inês começa a fazer barulho e isso acalma-me. Tenho medo que ela um dia cresça e comece a odiar-me. Sei que isso irá acontecer inevitavelmente, mas gostava de arranjar uma vida própria (e uma casa própria), de forma a poder estar triste em paz.

Escrevia-te aquelas cartas enquanto a mãe da Inês via filmes do David Lynch com a Inês adormecida ao colo. Ontem a mãe da Inês cozinhou um gratinado de espargos maravilhoso e eu pedi-lhe a receita, que arquivei imediatamente no meu livro de receitas que já vai com duzentas e cinco. Depois, juntei-me a elas na penumbra da sala, embora não goste de David Lynch. A mãe da Inês diz que eu sou o pai da Inês e a Inês precisa de um pai à altura das circunstâncias. Entretanto, cortaram-me o subsídio de desemprego e fui relegado para a categoria de ”indiferente para a sociedade”. Engordo e rio, e engasgo-me quando como e rio ao mesmo tempo. Às vezes oiço Mahler, e é então que me sinto arrependido. Mas mesmo isso não é suficiente, nem de perto nem de longe, para eu deixar de fazer o que tem de ser feito.

Sinto saudades tuas, amigo. Tenho sentido a falta das nossas conversas e da nossa juventude. Soube que ganhaste um lugar importante na estrutura governamental. Mas sossega! Não venho pedir-te favores nem empregos. Apenas cinco minutos do teu tempo para continuares a ler as minhas cartas que, prometo, vão recomeçar agora com mais frequência.

É isto, portanto, que tenho andado a fazer. Desculpa o meu silêncio dos últimos tempos, mas a Inês tem andado especialmente rabugenta. Posso agora, enfim, voltar à rotina desta vida que, repito, não é a minha. Eu não me sinto eu – e pergunto-te: não é irónico? Não é isso mesmo que mereço?"


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