terça-feira, maio 31, 2005

Dez de trinta e três

A minha irmã cresceu para se tornar uma bonita mulher, e os jogos de chaves que costumávamos fazer - gémeos de aventuras, de taças de cereais partilhadas nas tardes de verão, quando a casa escurecida pelos reposteiros corridos até metade - e aos vinte e três anos ela começou a passar o seu tempo livre a fazer uma colcha para a cama, bordando em ponto cruz as «Teses sobre Feuerbach», itálicos incluídos e mesmo um ou outro termo em alemão para elucidar ambiguidades da tradução a que recorrera (o sempre problemático "Gemüt", por exemplo).

A rapariga de Wallasey, a rapariga do Lumiar não era, porém, a minha irmã - já que vivíamos num sítio ambíguo entre a Calçada de Carriche e Telheiras, no meio de baldios e tampas de esgoto a borbulhar - mas sim a Lúcia (Lucie, Lucy), a amiga da minha irmã que só queria que a deixassem em paz com Marx e Engels - e por mais que eu tentasse meter conversa ela sempre deixou claro que não havia intelecto que pudesse algum dia respeitar.

Ela estava a treinar-se para rapariga de motim, e lia fotocópias de panegíricos e opúsculos de chilenos ressabiados enquanto caminhava pela rua - pobre eu que não conseguia deixar de olhar para as linhas doces que demasiados quilómetros de fel tipografado haviam tornado em rugas de sabedoria, de preocupação, de ódio por aquelas coisas que eu gostava como leitores de cd portáteis e filmes com o Eddie Murphy.

Há ainda espaço na minha vida para mais um intento, para mais uma emoção - há espaço na minha vida, no meu cavalinho de madeira, para as tuas carnes femininas revolucionárias cor de leite, frias ao toque, reagindo aos meus dedos quando te toco - as partes descuidadas e em sítios negligenciadas do teu corpo de que te esqueceste, os sítios onde Lukács é uma comichão, Gramsci uma irritação pela qual eu passarei Fenistil, seguido de um beijo santo, cheio de práxis.

Há miséria por todo o lado que vejo, nos cães que vomitam nos baldios e nas pessoas que aos domingos passeiam por entre os cães que vomitam nos baldios, e após a hora do lanche pensamos todos que de certo modo não tem necessariamente de ser assim, mas esta gente tem trabalhado tanto toda a sua vida percebes, tem feito coisas tão repetidas e tão degradantes e tão redutoras que seria um milagre que todos estivessem preparados para se levantar em chamas, em fúrias, o sangue pulsando nos pulsos e nos peitos como o teu - como as veias azuladas que eu vejo nas tuas mãos quando escreves na escrivaninha da nossa marquise, fazendo cópias diligentes, em caligrafia tão burguesa (tão «Kitty»), de receitas macrobióticas e citações de Oscar Wilde.

Oitava tese sobre Feuerbach: «A vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que seduzem a teoria para o misticismo encontram a sua solução racional na práxis humana e no compreender desta práxis». Arrebatado a ponto cruz pela minha irmã num tecido cru, daqueles que deixam fugir o calor do corpo durante a noite. Estás a ver a solidão do corredor de longa distância? - quando acaba a corrida e olha à sua volta...

...eu adorava ir contigo para os sítios onde vais.

Sai, portanto, da tua carapaça de degredados e torturados e clandestinos, traz-me o nariz arrebitado e os lábios finos da classe média instalada - que eu sei que tens. Entra no quarto onde eu comparo as cilindradas das motas de corrida e as minhas possibilidades de sobreviver no Dungeons and Dragons - esqueçamos a colcha que a minha irmã retira das suas fadigas e dos olhos com miopia galopante - e deixa-me fazer contigo aquele amor sôfrego, trôpego, cheio de roupas e corrigir de posições, aquele amor de despedida dos mexicanos e dos trotskistas, aquele sexo desajeitado dos jovens comunistas.


Free Hit Counter