quarta-feira, junho 30, 2004

Lisboa

Lisboa, palco dos meus amores, Lisboa: onde eu não perdi a virgindade, onde a natureza não fez de mim um homem - Lisboa, cenário das minhas exibições, fitas, crises amuos mentiras - Lisboa onde cresci na estranheza e na perversidade, onde acabei de ténis brancos e blaser. Lisboa, sítios gajas tantas raparigas loiras e mesmo as morenas têm a alma loira... - modelos e jovens actores de baixa estatura todas as noites no Bairro Alto, crianças de sexto ano com cigarros entre os dedos e roupas apertadas e mochilas cor de rosa com pensos e coisas - e uma imensa vontade de agradar, uma imensa carência de companhia. Lisboa, barulho de milhões de conversas inúteis sobre arte e cinema e o mundo - conversas sem substância e sem consequência, e revestidas de beleza por isso - milhões de palavras embriagadas e sussurradas com desejo e desespero - Lisboa das camas das tentativas teatralizadas e patéticas de suicídio das depressões das noites sem sono a estudar a foder - Lisboa e o apelo do atlântico no povo doirado do mar que vive ao longo da linha de comboio que vai até Cascais - Lisboa do Guincho e das escapadinhas nos hotéis do Guincho e das areias das praias cobertas de preservativos e seringas infectadas, um ou outro cadáver e mesmo alguém que ama e dorme e sonha com tanta força... Lisboa óculos de sol, cigarros fumados por jovens em jejum enfiados até à cintura numa maré que leva à vida adulta, e as peles, ano a ano, serão sazonalmente bronzeadas e as festas vão acontecer nem que sejam festas tristes entre três a quatro amigos que sabem que inevitavelmente se separam, e os bares e as tabaqueiras e os dealers e as putas vão ter sempre negócio e Lisboa vai descansar aos domingos nos cafés de bairro - e meias de lã para os bebés vão continuar a ser feitas por futuras mães.
Lisboa, ouve: "I'm too busy acting like I'm not naive", eu chego ao ponto de dar dinheiro às pessoas que me pedem!, aos jovens que todos os dias procuram partir de Sta. Apolónia para Idanha-a-Nova, aos estropiados aos chorosos aos esfomeados aos estupradores - eu olho para tudo e ainda hoje é como uma criança que eu entro no autocarro e que me dirijo às raparigas caixa de supermercado mais novas do que eu (que passam rapidamente as minhas mercearias no sensor óptico pensando no seu namorado de cabelo rapado como o meu!) - ouve, Lisboa, nas ante-estreias de comédias rasca eu tinha vergonha de estar no meio daquela gente toda, da tua gente, e quando a sessão acaba há átrios iluminados e pessoas brilhantes que se dirigem para os seus lofts - meu deus eu nunca entrei num loft! - e por isso não é supreendente que eu a todo o momento pense em formas de me vingar. Afinal, sou apenas mais um jovem aborrecido com a sua vida sexual e com um complexo de inferioridade - nada que tu não conheças já, Lisboa.
O meu esforço infrutífero para conhecer Lisboa, para abarcar e assimilar estes perfumes destas peles e a rouquidão destas vozes - e as vielas e os recantos e as casas onde as pessoas envelhecem sozinhas, e os quartos escuros com mobiliário de design e camas brancas praticamente ao nível do chão e lençóis desfeitos por corpos em luta - deus, não ter dormido em todas as pensões do Rossio, não ter enfrentado o vento e a chuva de Lisboa com a gola levantada de um sobretudo preto, não poder poisar naquelas varandas ou pairar diante das janelas como um pássaro, não ter beijado os lábios agridoces das oferecidas e das impossíveis - deus, não ter estado em Lisboa mas apenas verdadeiramente no meu quarto em Benfica, onde queimei os incensos da frustração e do desejo de amor.
Lisboa: pequenos gatos esventrados esfriando ao sol, raparigas chorando nos cantos da faculdade, alarmes que despoletam subitamente nas tardes cálidas, a Praça do Chile o local mais desolado para os que acabaram de perder o amor... os casamentos as noivas os patos na lama os imensos centros comerciais e as cabinas nas casas de banho dos centros comerciais onde as pessoas cagam em tristeza e onde por vezes cheiram coca - uma imensa bola de bowling em movimento ao longo da pista contra imensos pinos e aqueles sapatos de sola lisa e apesar da obscuridade que envolve tudo uma beleza que é quase blasfémia, alguém que festeja sorrindo para o céu.

terça-feira, junho 29, 2004

Genéve

Eu tinha na minha mala uma tradução espanhola de 'Cacau' de Jorge Amado, que me tinha sido oferecida por uma senhora espanhola a viver na Suíça e que, não sei porquê, estava a ler. No corredor do hotel estava uma americana sentada no chão a ouvir música, sandálias ao lado dos pés nus, e eu estava a dizer coisas como "I'm a country boy" e "I'm from a small town in Alabama" e "My grandfather has a farm", vezes e vezes sem conta, e conseguia ver que estava a parecer estúpido e ela claramente não estava impressionada por isso mudei para outros temas como o James Taylor que tinha estado quatro vezes num hospital de saúde mental, a diferença entre Vermont e Vancouver, a excelente programação cultural da Primavera em Viena (eu nunca tinha estado em Viena), a vida nocturna de Praga ('vida nocturna de Praga'?), coisas assim. E ela continuava a sorrir mas apenas por tolerância acho, e quando fiquei sem coisas para lhe dizer virei-me para uma rapariga gorda sul-africana que também estava por lá a rir-se demasiado e ela estava viciada em morfina desde que tinha feito uma operação à coluna e eu 'oh really?' tentando não parecer muito impressionado, e havia figurantes a abrir as portas dos quartos e a mandar-nos calar e nós ficámos por lá até ser tarde - estávamos sozinhos, afinal, e o guião dizia explicitamente para conhecermos pessoas e sermos simpáticos, e eu obedecia às orientações do realizador e as câmaras seguiam-me para todo o lado.

Só depois, dias mais tarde, chegámos a Viena, mas como sempre lembro-me mais da viagem do que propriamente da estadia - o rapaz húngaro cego de barbas compridas a dormir no corredor do comboio devido a sobrelotação e a tocar com os dedos durante a longa noite o seu violinozito desfeito, e apesar de ser cego e ter todo o estilo de ser um daqueles artistas sobredotados e geniais tocava mal mal mal mal, e a sua companheira também agonizava orgulhosamente no corredor - de modo que acabámos por lhes deixar tomar os nossos lugares durante umas horas. Lembro-me dos seus diálogos em húngaro (ciganos, florestas, fogueiras à noite, Transilvânia) com o som do comboio e do vento e o cheiro dos campos à noite no fundo, e o realizador estava a dizer-me para 'parecer sonhador e sensível' por isso eu tentava escrever uns poemas enquanto pensava porque raio uma rapariga quereria andar pela Europa fora com um pobre diabo daqueles, mas claro que isso era apenas eu a pensar e quem me manda a mim pensar, e de qualquer modo toda aquela solidariedade da estrada e dos carris estava a começar a fartar-me e eu não via nenhuma solução para o que de facto importava na minha vida, portanto: fast forward até Nîmes, França (outra cidade, as mesmas gajas de sempre) e zoom in até eu nas galerias escuras de um teatro romano, caído de joelhos, a enxotar morcegos e a vomitar.

segunda-feira, junho 28, 2004

Los Lunes al Sol

Los Lunes al Sol: o filme que nunca cheguei a ver. No poster, o Javier Bardem está sentado no topo daquilo que em Lisboa seria um cacilheiro, e tem os olhos fechados e a cabeça ligeiramente inclinada (como os homens nos jardins de Paris!) e por todo o lado no poster é segunda-feira de manhã e ao longe está uma cidade e o Javier Bardem está desempregado. E só por este poster eu tenho sonhado dias e dias em como seria o filme.
Estive duas ou três vezes para ir ver Los Lunes al Sol, e porque como é óbvio queria ir ver à segunda-feira durante a tarde para poder ainda apanhar sol quando saísse, e como estava à espera de um telefonema que nunca mais chegou, o tempo acabou por passar e.

Imagens dessa Primavera: fechado em casa a ler Platão, a ler Aristóteles, em busca da citação perfeita. Fechado em casa a ler Foucault, a ler Oakeshott, a ler Waltz, a desistir de ler Waltz, a esquecer-me por completo do que tratava o livro do Oakeshott, a não chegar a acabar o terceiro volume do Foucault. Preparava-se o Verão mais quente de que havia memória, e ironicamente eu tinha decidido nessa Primavera aceitar o sol, receber o sol na cara e sentir a sua doçura, como aposto que o Javier Bardem sentia. Tinha também decidido aproveitar aqueles dias com o sentido de fatalidade com que (imaginava estupidamente) um desempregado como o Javier Bardem acordaria.
Dessa Primavera: um sentimento de despedida em tudo, o João e a Raquel a aparecerem em minha casa com ondas de frescura e alívio, a trazerem bolos, a convidarem-me para gelados, para cervejas nas cafetarias de Benfica. O meu curso a terminar, outros compromissos na faculdade de que me queria desesperadamente soltar e dos quais não falarei, a sensação de que talvez pudesse ter feito outras coisas, a sensação de que agora tudo estava a morrer.
Primavera: a minha mãe doente numa cama de hospital, uma bolsa para a qual pingava o alcatrão que lhe escorria dos pulmões, a minha mãe demasiados dias naquele hospital e no geral demasiadas caras naquela enfermaria, um sentimento de alegria artificial em tudo porque o sol estava sempre a pôr-se naquele sítio e a minha mãe passava lá as noites sozinha, com dores, e eu ficava sentado aos pés da cama sem saber o que dizer, por isso olhava para o televisor e segurava as pontas dos dedos da minha mãe e não dizia nada, e depois o tempo passava naquele silêncio esterilizado e eu tinha de sair - e depois eu voltava a Lisboa num comboio que demorava muito tempo, e onde escrevia poemas sobre raparigas do campo.

Eu tinha perdido a minha última hipótese com o amor à medida que o tal telefonema nunca mais chegava, e tinha sido até bom acho, numa única tarde em que acabámos com os lábios secos por causa do chá, apenas por causa do chá, e nessa tarde ela levou-me a um sítio onde se diz que o Camões foi preso, e juro que durante um fim de semana eu pensei que a minha vida poderia começar de novo - eu juro que tentei, juro que abri os braços.
Mas o meu tempo em Lisboa já estava a acabar de qualquer maneira e julgo que mais do que ninguém ela percebeu isso, e a minha vida é uma sucessão de pessoas a saberem melhor do que eu o que é melhor para mim, mas de qualquer maneira eu penso nela às vezes e a vida é mesmo assim.

Panticosa

Durante semanas, vivi numa aldeia nos Pirinéus espanhóis. Tínhamos chegado pelo sul de França, após evitarmos Toulouse-a-cidade-do-mármore devido à chuva e ao cansaço. Eu tinha levado uma mala de livros, tinha planos de escrever uma novela, ler regularmente o jornal local. Trazia comigo, entre outros, os dois volumes do 'De la Démocratie en Amérique', de Alexis de Tocqueville (ed. GF-Flammarion).
A aldeia ficava no sopé de um monte onde se situava a estância de esqui, e apesar de ser Verão havia um teleférico em funcionamento, por isso eu subia quase todas as manhãs e observava as aulas de iniciação ao esqui num terreiro de neve artificial, alimentado constantemente por uma máquina ruidosa que cuspia flocos gelados e vento. Tratava-se de aulas para crianças, filhos da classe média-alta de Saragoça e Pamplona, vestidos a preceito com anoraques de cores fortes e óculos escuros nas caras besuntadas de protector solar - e eu observava essas crianças e bebia Coca-colas e dava voltas pelo monte, uma paisagem que começava a conhecer.
Lia durante a tarde. Dormia sestas na varanda, estendido numa cadeira de praia, debaixo do sol fraco. Comia queijo e bolachas de água e sal. Depois de jantar ficava subitamente frio e muitas vezes eu acabava a noite na discoteca local, um sítio onde irrompiam sucessivas brigas, onde alguém sempre desatava a chorar, onde as raparigas locais e as da cidade se mediam, onde, diariamente, e sem surpresas de maior, os adolescentes representavam os seus dramas.

Fiz amizade com um rapaz de Pamplona que esperava a chegada dos pais enquanto, supostamente, estudava para os exames de Setembro. Éramos quase vizinhos. Uma vez fui com ele e com os seus amigos até aos poços naturais situados no ribeiro junto à aldeia, e onde consegui chegar sem mazelas graças às indicações precisas dos meus companheiros - que pé colocar e onde, a que reentrâncias da rocha me agarrar, de que maneira transferir o peso do corpo por forma a escapar à água turbilhonando em baixo - o que me fez sentir como um autómato, feliz porque seguro, porque estranhamente confiante nos que me rodeavam.
Depois os saltos: os voos de três, quatro metros, nas zonas negras das piscinas - a água gelada, as sapatilhas velhas do meu amigo subitamente familiares, as arestas arranhando os pés molhados, as pequenas pedrinhas cravadas na pele.

Nesse dia, já de volta a casa, enquanto tentava conciliar o lanche com a leitura de um jornaleco da zona francesa dos Pirinéus, fiz uma profunda ferida num dedo, ao cortar queijo. Olhei o dedo ferido com uma certa estranheza durante algum tempo. Depois, comi o queijo empapado no sangue, o que deixou o seu sabor por demasiado tempo nas minhas gengivas. Era altura de regressar.

sábado, junho 26, 2004

Pinar de Antequera

Valladolid, Valladolid, o que mais me lembro de Valladolid é dos bairros residenciais nas cercanias a que chegávamos de comboio, aquelas tardes preguiçosas de Outono em Pinar de Antequera e andávamos de bicicleta pelas ruas desertas esmagando as folhas que caíam, acelerando de sombra em sombra, e ao fim da tarde ficávamos nos bancos de trás da missa naquela pequena igreja moderna, misturando-nos à saída com os vizinhos que se conversavam. Como o meu aniversário em Valladolid naquele Outono dourado, triste como uma laranja espremida e eu a chegar às quatro da manhã no comboio e aqueles três malucos que não via há um ano a esperarem-me na estação vazia com um balão, de modo que em Pinar de Antequera passávamos as tardes a andar de bicicleta naqueles bairros de vivendas e pedalávamos até chegar ao limite e encontrar uma estrada ou um descampado e então ficávamos parados a olhar para aquilo durante demasiado tempo, antes de voltar para trás.

Na casa do Felipe eu movia-me como num sonho, todos aqueles quartos e aquelas cabeças de criança a espreitarem-me de todos os lados, os tectos altos e os cães no largo quintal com um imenso pinheiro que eu achei que devia ter um espírito que sentia tudo e todos - o Felipe com a sua guitarra e o aparelho de dentes que usava de noite e que parecia um açaime ao estilo Hannibal Lecter. Pobre Felipe, dificilmente encontrarei alguém que me cative tanto com a sua força humana, a sua fúria triste: O Felipe a oferecer-se para me mandar ácidos pelo correio, o Felipe a arder de febre deitado numa rede em La Guaira, o Felipe vermelho enraivecido a lutar contra um banco de autocarro, o Felipe a ir ao mar de botas.

Por isso, Valladolid, Valladolid, lembro-me do último dia em Pinar de Antequera e o último duche, e a casa imensa, escura e tranquila em mais um anoitecer de Setembro e o Felipe a tocar no violino a música do filme A Missão. Lembro-me da Tania ao telefone e eu a perguntar-lhe porque é que não estás aqui e ela a responder-me porque não posso, lembro-me de uma discoteca onde uma rapariga lambia a orelha de um homem careca e lembro-me também de uma pintura de El Grieco que vimos num palácio qualquer - e alguém ficou a explicar-nos durante muito tempo aquela pintura de Jesus morto e já não me lembro se no quadro também estava Maria, mas Jesus tinha acabado de ser descido da cruz, isso sim - e por isso para mim Valladolid é Jesus ter morrido por todos nós.

Um mundo sem amor (IV)

Domingo de páscoa: eu não quero este dia. Saio na estação de metro de Ballard. Eu nunca estive aqui. Ballard é o nome do autor de Crash, de Hello America, de Empire of the Sun, de The Kindness of Women, de The Atrocity Exhibition. Ballard é um bairro suburbano no sudoeste de Paris, eu saio em Ballard e é domingo de Páscoa e eu não quero este dia e procuro uma cabine telefónica assim que saio, desorientado, da estação de metro. Está sol e na cabine telefonica eu, eu abro os braços e encosto as mãos nos vidros da cabine e olho para o chão sujo cheio de vidros pequenos e respiro fundo, depois abro o mapa e fecho o mapa e meto o mapa no bolso de trás das calças e respiro fundo. Durante este tempo todo eu estou a segurar no bocal do telefone e há lá dentro uma voz feminina a dizer que o número que marquei não está disponível.

Depois o parque André Citroen e aquele domingo triste, cheio de sol e o Sena suburbano e as famílias suburbanas e joggers e eu sento-me num banco e fico calmo. Leio umas páginas do Huckleberry Finn e escrevo um poema, talvez dois. Estou de costas para o rio e num banco junto a mim o habitual mendigo dorme. Depois ponho-me a andar e e volto para trás e sigo por outro caminho e vou olhando para o mapa, e compro uma banana e uma maçã e penso em urinar. Ela tinha chegado a casa às dez da manhã, ainda bêbada, acordando-me com um grito jovial de pequeno almoço. Depois uma música na cozinha e eu na cama a pensar eu não quero este dia e eu a percorrer avenidas sozinho a pensar em urinar e na música 'se estás com medo tens de sair correndo', e eu acabo por ir urinar aos Invalides a cerca de 100m do túmulo do Napoleão, e nessa altura eu já amo Paris por isso nada me importa.

Depois, no museu Rodin, eu iria sentar-me no jardim e olhar para os Burgueses de Calais e iria começar um poema chamado Burgueses de Calais cujo primeiro verso era houve um tempo em que as ruas eram escuras e o pão salgado, e nunca cheguei a acabar esse poema, e nesse dia mais uma vez não almocei – acetona na minha boca é Paris também.

E o cheiro a café? O cheiro a café naquela manhã enquanto eu tentava voltar para o sono enquanto a música se estás com medo tens de sair correndo, e eu naquela cama era uma das pessoas mais infelizes que conheci e não queria aquele dia e mesmo assim tinha sempre bilhetes de metro, bilhetes inesgotáveis, e pernas, pernas boas e jovens – e uma bexiga formidável que aguentava até aos Invalides. Tinha-me a mim, só a mim, e já não era pouco.

Tenho andado a espalhar a minha urina pelas casas de banho e ruas mais estranhas deste mundo, e mesmo assim não estou cansado.

Um mundo sem amor (III)

Quando estava em Paris comecei, por virtude da ausência de grandes inconvenientes nas minhas deambulações diárias, a confiar numa espécie de intuição a que confortavelmente chamava orientação divina. Quando saía de uma estação de metro, por exemplo, dizia para mim próprio ‘preciso de um sinal’ para saber para onde me dirigir e exactamente onde me situar no mapa – resultado: quase nunca me enganava. Era assim que entrava e saía de ruas, escolhia caminhos e, em geral, confiava em mim próprio, e como cada rua e caminho tinham algo de bonito ou surpreendente eu nunca me arrependia das minhas escolhas. Foi por isso que ao chegar àquela bifurcação perto da Bastille, onde se encontrava uma pastelaria, eu parei, hesitando por momentos, decidindo se havia ou não de entrar. O facto de um homem ter entrado no preciso momento em que duvidava serviu-me como o sinal de que estava à espera. Lá dentro pedi um Paris-Brest e a funcionária corrigiu a minha pronúncia, acentuando o ‘st’ final, de uma forma que não deixei de achar um pouco rude. Tínhamos combinado nos degraus da Ópera Bastille para um passeio, e eu tinha passado a manhã toda a caminhar desde Stalingrad ao longo do canal de S.martin cortando depois por uma avenida que não me lembro o nome (Chemin Vert?) até ao Cemitério Pére Lachaise onde ao princípio não queria ir. Tinha estado a ver as sepulturas de Proust, Wilde e claro Jim Morrisson, embora não me tenha entusiasmado muito com esta última.

Não conversávamos muito. Eu dei-lhe o Paris-Brest e ela comeu um pouco e guardou o resto na mala. Chegámos ao Sena e cruzámos junto ao ministério das Finanças (gare de Austerlitz, acho), e depois parámos num restaurante fast-food para ela beber café e comer o resto do bolo. Quando estávamos sentados eu falei brevemente sobre os meus amigos de Lisboa e depois pedi-lhe desculpa por tê-la desrespeitado na primeira noite ao ponto de a ter beijado. Saímos do restaurante e eu voltei a entrar para ir à casa de banho e o meu cabelo estava horrível e fomos até à biblioteca nacional François Midterrand com uma floresta no meio e foi aí que nos sentámos. Ela contou-me de como o pai chorou no dia em que a foi deixar ao aeroporto e como lhe preparou um pequeno-almoço, dias depois daquela discussão tão grande, e o pai dela nunca gostou de mim, julgo que por também ter sangue português – os portugueses detestam-se todos em países estrangeiros. E o sol estava a ficar fraco e tudo isso e eu não falava muito e não havia de facto muito para dizer e tudo estava tão acabado e tudo tão triste, e caminhámos até Jeanne d’Arc onde eu queria ver uma igreja mas esta estava fechada, e depois até à Place d’Italie em busca de uma padaria aberta e por isso acabámos por ir a um centro comercial mas todas as lojas estavam fechadas o que era estranho porque havia algumas pessoas a passear – e depois acabámos por ir comprar pão à rue de Mouffetard, de modo que caminhámos imenso.

Mostrei-lhe orgulhoso a casa de Hemingway mas ela desvalorizou-a um bocado assim que percebeu que ele tinha vivido lá apenas cerca de um ano. E já não me lembro mas acho que uma vez mais não tinha almoçado nesse dia por isso ao jantar comi com apetite e queria ver os '10 Mandamentos' na televisão mas não se via imagem, só o som da dobragem em francês e a música dramática, épica, de modo que me aborreci um pouco e ela adormeceu por volta das dez e eu fiquei sentado no sofá, no quarto silencioso, durante muito tempo até me juntar a ela na cama com um silencioso ‘com licença’.

Encontrei a sepultura de Marcel Proust graças a um homem sentado num banco de pedra, no quarteirão 85 do imenso Pére Lachaise. Era uma sepultura simples, familiar, quase despercebida no meio de outras iguais. Havia algumas pedrinhas em cima do tampo por isso eu coloquei a minha pedrinha também apesar de nunca ter lido Marcel Proust. Julgo que aquele ar devia estar cheio de coisas podres, mas o bom tempo só prometia pureza, juventude.

Um mundo sem amor (II)

Não era bem uma cama aquilo que partilhávamos, mas antes um sofá aberto e na primeira noite – antes mesmo de a velha doença voltar – ela tinha-me dito para escolher um lado da cama e eu escolhi aquele em que se caía se nao houvesse um peso a balancear do outro lado. Por isso na primeira manhã quando me levantei sozinho quase virei o sofá, e os barulhos da rua eram tão claros e agudos e eu tinha duas músicas na cabeca por isso sentei-me numa velha poltrona cheia de roupas, no meio da obscuridade, e escutei ‘Clementine’ de Elliott Smith e ‘Shadowlands’ de Ryan Adams. Tinha a cidade toda à minha espera, e aquilo que entrevia pela janela nem sequer era Paris, e eu estava a pensar que provavelmente tinha sido um erro querer, uma vez mais, tocar este velho disco, e ela tinha-me deixado uma nota a combinar um almoço pelas duas da tarde, junto com um mapa do metro e as chaves, por isso eu resolvi sair de casa o mais depressa possivel – e a casa nao era minha, eu era apenas um visitante, era apenas temporário.

Lembrei-me que, na noite anterior, antes de me perder nas ruas de Clichy, tinha passado de metro pela paragem Anvers, de onde, pelo que me parecia, poderia chegar a Sacre Coeur. Pareceu-me um sítio tao bom como qualquer outro para comecar, e quando saí do metro em Anvers comprei um jornal inglês e um pacote de leite e subi Montmartre até uma praça cheia de turistas onde se via a catedral e de repente fazia um sol bonito e forte que não me deixava ver Paris – e por isso virei as costas ao sol e olhei para os turistas e para a catedral e estava subitamente feliz e bebi o meu pacote de leite. Houve até um casal que me pediu para lhes tirar uma fotografia.
Foi entao que entendi que era assim que ia ver Paris e todas as cidades do mundo: sozinho, com um pacote de leite na mão, com a música do Padrinho (da familia e da morte) na cabeça, com a sensação de que chegaria sempre um pouco depois da hora, mas quase nunca demasiado tarde.
Depois houve St.Denis, e um almoço, e depois houve Chatelet e a chuva e um gigantesco pote dourado à frente do centro Georges Pompidou, e a chuva e uma montra cheia de ratos e galerias vazias com fotografia surrealista e um rapaz chamado billy ao telefone e eu a querer apenas ir para casa – e depois casa e ela a dormir e eu no quarto obscuro sentado na velha poltrona a olhar para nada, depois a escrever um poema chamado ‘quarto em paris’ num quarto que nem sequer era em paris. E depois veio o jantar e cervejas e nessa noite ficámos a conversar até tarde e rimo-nos histericamente e no meio daquelas risadas eu pensava que estava a sofrer, e depois eu perguntei-lhe se ia dormir e ela respondeu é suposto que sim.

De volta à minha pequena aldeia, estive a pensar noutro dia que não como ovos há muito tempo simplesmente porque não os consigo encontrar no supermercado. O que é ridículo, porque sei que eles estão lá e sei que toda a gente come ovos – no entanto, acabo cada sessão de compras sem aqueles preciosos e frágeis testículos. Até as cobras, e os lagartos, se os há neste país, até as cobras devem ocasionalmente espetar os dentes num ovo e chupar o conteúdo – mas, apesar de ter domesticado muito e compreendido outro tanto, parece-me que ainda não aprendi ‘the way of the egg’.

Um mundo sem amor

Ela cortava livros. Quer dizer: usava uma faca romba e fazia dois livros de um só, volumes reduzidos a tamanhos insuspeitos, com histórias estranhas, reinventadas. No terceiro ou quarto dia em Paris ela deu-me um livro pequeno (o resto de um bloco de apontamentos que ela achara demasiado grande) e instruiu-me para o preencher sem olhar a ordem de páginas: ora utilizando a primeira, ora utilizando a última, alternadamente. Em cada uma das capas colou uma fita de céu, e por isso não havia parte de cima nem parte de baixo. O objectivo era, segundo as suas palavras, subverter essa coisa dos princípios e dos fins.
Junto da lombada colara também tiras de peluche vermelho, restos de um fato que andava a fazer na altura.
De resto, em Paris fui, mais do que tudo, Woody Allen. Nos bancos dos parques havia sempre um homem sozinho, de cabeça descaída e olhos fechados, encarando o sol numa pacífica felicidade. Nesses dias, eu comia pão convulsivamente (passar por uma padaria despertava-me desejos quase eróticos) e não dava nada aos pombos, ratos com asas que cagavam os bancos de jardim onde, ao contrário daqueles homens tão sozinhos e felizes, eu não me podia sentar.
E foi assim que caminhámos até Ménilmontant em busca de uma igreja onde foram rodadas cenas do filme 'Femme Fatale', de Brian de Palma. Fomos encontrá-la numa praceta demasiado normal, diferente do que o filme deixava transparecer. Discutimos longamente sobre qual seria a varanda a partir da qual o Antonio Banderas tirava as fotografias. Havia jovens adormecidos nos degraus da Igreja. Na nossa cabeça soava o famoso Bolero das cenas mais elaboradas do filme. Tínhamos cerca de meia hora para chegar à Torre Eiffel onde nos esperavam as espanholas. Nesse dia eu não almocei. Ficou enevoado mais tarde, e eu tinha cerca de um mês (prazo imposto por ela na noite anterior) para dar uma volta à minha vida e convidar alguém para sair.
Passou por nós uma carrinha branca completamente coberta de graffittis. A nossa primeira reacção foi rir, mas logo nos apercebemos da força mental (ou da enorme capitulação), do dono daquela carrinha, que simplesmente aceitou os graffittis e deixou de fazer crer que tudo pode ser limpo e apagado.


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