Punch and Judy (12/33)
Costumava sentar-me nos bancos dos jardins ao sol, a roer a carne dos pêssegos que ia retirando de um saco de papel. Isso foi antes de Munique. Impossível esquecer Munique: eu tinha trinta e três anos! E o cabelo a desaparecer. Que Verão tão longo, aquele Verão de 2005.
Munique e a relva cinzenta, Munique e os clubes nocturnos: no meio da vida estamos em dívida. E era impossível não reparar no piscar de olhos aos Smiths: “no meio da vida estamos em dívida, etc, etc…” – era isso que a multidão gritava, e numa noite eles levariam a piada mais longe ao fazer uma versão de “Sweet and Tender Hooligan”, com o Erik a segurar um ramo de flores na mão… e etc, etc estávamos em Munique, isto estava a tornar-se mórbido, uma rapariga que eu não conhecia estava perdidamente apaixonada por mim.
Eu costumava afundar a cara naqueles cabelos loiros, dedilhar os pelinhos rapados da sua púbis – os pêlos alemães que me eram tão estranhos, e os olhos cerrados, vedando-me o acesso ao seu mundo alemão de pão amargo, pele cinza, Verão de chuva.
O meu emprego era arranjar soluções para frases. Eu recebia fragmentos, destroços e por vezes palavras inacabadas, e tinha de arranjar uma desculpa, uma razão, um corpo para o que as pessoas queriam dizer. Criei assim a imagem de uma humanidade amordaçada, vivendo debaixo de máscaras. Pelo contrário, eu era um articulador, um discursista, um comunicante. A minha cara aberta, nua, colocada em estandartes e sujeita à violação.
No Verão de 2005 (impossível esquecer!) percorremos aqueles clubes nocturnos todos e conhecemos os editores das fanzines, cujo conteúdo satânico ia aumentando à medida que nos embrenhávamos mais e mais nas caves, nas horas perdidas da noite, nos becos para onde davam as saídas de emergência e por onde invariavelmente saíamos, eu e a rapariga alemã, aos beijos sôfregos mas angustiados. A Karen, assim se chamava, era na verdade uma triste menina saída do Colégio Alemão de Lisboa – mudara de curso universitário três vezes em três anos e decidira finalmente tirar um ano para pensar, para voltar à Alemanha e aos tios e aos avós, e principalmente aos concertos góticos das caves de Munique.
Ela sorria pouco e falava muito, ao contrário de mim, que era todo sorrisos, sentindo porém alguma dificuldade em comunicar. Ela acabou por gostar do meu silêncio e durante alguns meses dormimos juntos – quando fazíamos amor ela não gostava que eu me mexesse muito, dizia-me frequentemente para estar quieto. Ela fazia todos os esforços e movimentos. Ela não suava. Acho que tinha apenas medo que a magoasse.
Quando Karen tirava as roupas eu via na sua zona abdominal um pequeno excesso de gordura. Não era nada de especial, apenas a ausência de magreza, mas atraía-me de uma forma quase obscena. Tocava-a muitas vezes aí; ela não reagia, parecia entender a minha obsessão.
Uma vez que o meu emprego me permitia mobilidade (exigindo apenas um par de horas sentado ao portátil e uma ligação à Internet), eu pude passar largos meses em Munique com a Karen. Na altura, eu estava a recuperar do fim de uma relação à distância com a rapariga com quem mais tarde casaria (o casamento durou apenas três meses, mas isso é outra história). Nos seus momentos mais carinhosos, Karen gostava de me olhar nos olhos com o meio sorriso de quem brinca, repetindo-me em sotaque francês a célebre frase do Apocalypse Now Redux: “Há dois de ti, não vês? Um que ama e outro que mata”. Lembro-me bem dos seus olhos sempre debruados a negro – uma maquilhagem simples, de pequenas lágrimas sombrias.
E isso era Munique. Serei eu uma rocha? Karen acompanhou-me, de madrugada, à estação de comboios. Ela não sabia nada sobre a minha vida, e nunca fizera perguntas – parecia entendê-la o suficiente para não necessitar de saber mais nada. Tínhamos a boca azeda, os lábios secos, os peitos sujos, quando nos beijámos pela última vez. Serei eu uma rocha?
E isso era Munique, ainda os ecos dos acordes e dos gritos extasiados e dos sons cavos que os corpos fazem quando amam quando choram – no meio da vida estamos em dívida. Munique em 2005, um longo caminho até lado nenhum. Isso foi depois da carne dos pêssegos que eu roía nos miradouros de Lisboa no fim do Verão, antes de ter arranjado uma Vespa, antes de ter acordado com homens na minha cama. Isso foi antes de eu ter lido o pequeno livro vermelho de Mao Tse-Tung, antes de ter levado uma vida burguesa nos arredores de Florença: cozinhar em Montesepolcro para o meu amigo que morria de SIDA.
Munique e a relva cinzenta, Munique e os clubes nocturnos: no meio da vida estamos em dívida. E era impossível não reparar no piscar de olhos aos Smiths: “no meio da vida estamos em dívida, etc, etc…” – era isso que a multidão gritava, e numa noite eles levariam a piada mais longe ao fazer uma versão de “Sweet and Tender Hooligan”, com o Erik a segurar um ramo de flores na mão… e etc, etc estávamos em Munique, isto estava a tornar-se mórbido, uma rapariga que eu não conhecia estava perdidamente apaixonada por mim.
Eu costumava afundar a cara naqueles cabelos loiros, dedilhar os pelinhos rapados da sua púbis – os pêlos alemães que me eram tão estranhos, e os olhos cerrados, vedando-me o acesso ao seu mundo alemão de pão amargo, pele cinza, Verão de chuva.
O meu emprego era arranjar soluções para frases. Eu recebia fragmentos, destroços e por vezes palavras inacabadas, e tinha de arranjar uma desculpa, uma razão, um corpo para o que as pessoas queriam dizer. Criei assim a imagem de uma humanidade amordaçada, vivendo debaixo de máscaras. Pelo contrário, eu era um articulador, um discursista, um comunicante. A minha cara aberta, nua, colocada em estandartes e sujeita à violação.
No Verão de 2005 (impossível esquecer!) percorremos aqueles clubes nocturnos todos e conhecemos os editores das fanzines, cujo conteúdo satânico ia aumentando à medida que nos embrenhávamos mais e mais nas caves, nas horas perdidas da noite, nos becos para onde davam as saídas de emergência e por onde invariavelmente saíamos, eu e a rapariga alemã, aos beijos sôfregos mas angustiados. A Karen, assim se chamava, era na verdade uma triste menina saída do Colégio Alemão de Lisboa – mudara de curso universitário três vezes em três anos e decidira finalmente tirar um ano para pensar, para voltar à Alemanha e aos tios e aos avós, e principalmente aos concertos góticos das caves de Munique.
Ela sorria pouco e falava muito, ao contrário de mim, que era todo sorrisos, sentindo porém alguma dificuldade em comunicar. Ela acabou por gostar do meu silêncio e durante alguns meses dormimos juntos – quando fazíamos amor ela não gostava que eu me mexesse muito, dizia-me frequentemente para estar quieto. Ela fazia todos os esforços e movimentos. Ela não suava. Acho que tinha apenas medo que a magoasse.
Quando Karen tirava as roupas eu via na sua zona abdominal um pequeno excesso de gordura. Não era nada de especial, apenas a ausência de magreza, mas atraía-me de uma forma quase obscena. Tocava-a muitas vezes aí; ela não reagia, parecia entender a minha obsessão.
Uma vez que o meu emprego me permitia mobilidade (exigindo apenas um par de horas sentado ao portátil e uma ligação à Internet), eu pude passar largos meses em Munique com a Karen. Na altura, eu estava a recuperar do fim de uma relação à distância com a rapariga com quem mais tarde casaria (o casamento durou apenas três meses, mas isso é outra história). Nos seus momentos mais carinhosos, Karen gostava de me olhar nos olhos com o meio sorriso de quem brinca, repetindo-me em sotaque francês a célebre frase do Apocalypse Now Redux: “Há dois de ti, não vês? Um que ama e outro que mata”. Lembro-me bem dos seus olhos sempre debruados a negro – uma maquilhagem simples, de pequenas lágrimas sombrias.
E isso era Munique. Serei eu uma rocha? Karen acompanhou-me, de madrugada, à estação de comboios. Ela não sabia nada sobre a minha vida, e nunca fizera perguntas – parecia entendê-la o suficiente para não necessitar de saber mais nada. Tínhamos a boca azeda, os lábios secos, os peitos sujos, quando nos beijámos pela última vez. Serei eu uma rocha?
E isso era Munique, ainda os ecos dos acordes e dos gritos extasiados e dos sons cavos que os corpos fazem quando amam quando choram – no meio da vida estamos em dívida. Munique em 2005, um longo caminho até lado nenhum. Isso foi depois da carne dos pêssegos que eu roía nos miradouros de Lisboa no fim do Verão, antes de ter arranjado uma Vespa, antes de ter acordado com homens na minha cama. Isso foi antes de eu ter lido o pequeno livro vermelho de Mao Tse-Tung, antes de ter levado uma vida burguesa nos arredores de Florença: cozinhar em Montesepolcro para o meu amigo que morria de SIDA.