domingo, julho 24, 2005

Punch and Judy (12/33)

Costumava sentar-me nos bancos dos jardins ao sol, a roer a carne dos pêssegos que ia retirando de um saco de papel. Isso foi antes de Munique. Impossível esquecer Munique: eu tinha trinta e três anos! E o cabelo a desaparecer. Que Verão tão longo, aquele Verão de 2005.

Munique e a relva cinzenta, Munique e os clubes nocturnos: no meio da vida estamos em dívida. E era impossível não reparar no piscar de olhos aos Smiths: “no meio da vida estamos em dívida, etc, etc…” – era isso que a multidão gritava, e numa noite eles levariam a piada mais longe ao fazer uma versão de “Sweet and Tender Hooligan”, com o Erik a segurar um ramo de flores na mão… e etc, etc estávamos em Munique, isto estava a tornar-se mórbido, uma rapariga que eu não conhecia estava perdidamente apaixonada por mim.

Eu costumava afundar a cara naqueles cabelos loiros, dedilhar os pelinhos rapados da sua púbis – os pêlos alemães que me eram tão estranhos, e os olhos cerrados, vedando-me o acesso ao seu mundo alemão de pão amargo, pele cinza, Verão de chuva.

O meu emprego era arranjar soluções para frases. Eu recebia fragmentos, destroços e por vezes palavras inacabadas, e tinha de arranjar uma desculpa, uma razão, um corpo para o que as pessoas queriam dizer. Criei assim a imagem de uma humanidade amordaçada, vivendo debaixo de máscaras. Pelo contrário, eu era um articulador, um discursista, um comunicante. A minha cara aberta, nua, colocada em estandartes e sujeita à violação.

No Verão de 2005 (impossível esquecer!) percorremos aqueles clubes nocturnos todos e conhecemos os editores das fanzines, cujo conteúdo satânico ia aumentando à medida que nos embrenhávamos mais e mais nas caves, nas horas perdidas da noite, nos becos para onde davam as saídas de emergência e por onde invariavelmente saíamos, eu e a rapariga alemã, aos beijos sôfregos mas angustiados. A Karen, assim se chamava, era na verdade uma triste menina saída do Colégio Alemão de Lisboa – mudara de curso universitário três vezes em três anos e decidira finalmente tirar um ano para pensar, para voltar à Alemanha e aos tios e aos avós, e principalmente aos concertos góticos das caves de Munique.

Ela sorria pouco e falava muito, ao contrário de mim, que era todo sorrisos, sentindo porém alguma dificuldade em comunicar. Ela acabou por gostar do meu silêncio e durante alguns meses dormimos juntos – quando fazíamos amor ela não gostava que eu me mexesse muito, dizia-me frequentemente para estar quieto. Ela fazia todos os esforços e movimentos. Ela não suava. Acho que tinha apenas medo que a magoasse.

Quando Karen tirava as roupas eu via na sua zona abdominal um pequeno excesso de gordura. Não era nada de especial, apenas a ausência de magreza, mas atraía-me de uma forma quase obscena. Tocava-a muitas vezes aí; ela não reagia, parecia entender a minha obsessão.

Uma vez que o meu emprego me permitia mobilidade (exigindo apenas um par de horas sentado ao portátil e uma ligação à Internet), eu pude passar largos meses em Munique com a Karen. Na altura, eu estava a recuperar do fim de uma relação à distância com a rapariga com quem mais tarde casaria (o casamento durou apenas três meses, mas isso é outra história). Nos seus momentos mais carinhosos, Karen gostava de me olhar nos olhos com o meio sorriso de quem brinca, repetindo-me em sotaque francês a célebre frase do Apocalypse Now Redux: “Há dois de ti, não vês? Um que ama e outro que mata”. Lembro-me bem dos seus olhos sempre debruados a negro – uma maquilhagem simples, de pequenas lágrimas sombrias.

E isso era Munique. Serei eu uma rocha? Karen acompanhou-me, de madrugada, à estação de comboios. Ela não sabia nada sobre a minha vida, e nunca fizera perguntas – parecia entendê-la o suficiente para não necessitar de saber mais nada. Tínhamos a boca azeda, os lábios secos, os peitos sujos, quando nos beijámos pela última vez. Serei eu uma rocha?

E isso era Munique, ainda os ecos dos acordes e dos gritos extasiados e dos sons cavos que os corpos fazem quando amam quando choram – no meio da vida estamos em dívida. Munique em 2005, um longo caminho até lado nenhum. Isso foi depois da carne dos pêssegos que eu roía nos miradouros de Lisboa no fim do Verão, antes de ter arranjado uma Vespa, antes de ter acordado com homens na minha cama. Isso foi antes de eu ter lido o pequeno livro vermelho de Mao Tse-Tung, antes de ter levado uma vida burguesa nos arredores de Florença: cozinhar em Montesepolcro para o meu amigo que morria de SIDA.

sexta-feira, julho 08, 2005

Oito de trinta e três (John Denver, James Taylor, Morrissey, fim)

Gosto de árvores. E gosto do hálito da manhã, do cheiro do calor no restolho das estradas e das árvores calcinadas no Verão – as ruas apodrecidas, ao entardecer, da minha terra natal. Gosto das ruas onde nasci à noite, cheias de recantos onde costumava esconder-me - as notas tristonhas de alguém que corre. Gosto de Setembro, e do vento frio sobre corpos morenos.

Das ruínas dos castelos e dos vestígios dos templos da Índia da minha infância. E das areias dos desertos, que estão mais perto dos meus lábios do que tu. Escorracei-me a mim próprio de tantos lados, e não precisava. É por isso que gosto das carruagens que correm pela planície em direcção ao mar, e dos céus azuis em dias mornos.

As senhoras do luar. Os pastores que vivem à chuva. A canção que os marinheiros cantam quando deixam de ver a costa. O meu Volvo a deslizar pelos Berkshires, no primeiro dia de Dezembro. Em mim, não tenho nada mais alegre para dizer.

Pessoas: preparem-se. Ando sem mágoa, mas sem facilidade, pelas ruas onde fui criado. E posso possuir estas coisas todas, posso ter as suas peles junto à minha, as vozes arfantes ao meu ouvido. No entanto, jamais poderei alcançar a matriz.

sexta-feira, julho 01, 2005

Onze de trinta e três

Para alguém, em algum lado, estas coisas vão importar – à medida que as casas arrefecem ao luar e eu regresso lentamente às minhas paisagens habituais. Estávamos em meados dos anos 80 e éramos punks rafeiros em Madrid. Adorávamos sarilhos, e os sarilhos adoravam-nos: éramos bissexuais, animais, doentes – andávamos às voltas pelo Instituto, desperdiçados nas companhias erradas, beijando os lábios fedorentos das raparigas de Pitis, de Peñagrande, do Barrio del Pilar.

Agora tenho casacos de malha, sessões de terapia, certezas e um número fiscal – a mãe dos meus filhos descasa-se e descose-se, e eu deslizo lentamente para as minhas pastagens habituais. Um Quaalude comprado na Internet e depositado docemente debaixo da língua, como um limão se eu tivesse mandíbulas de hipopótamo.

E descubro então a coisa mais espantosa: descubro que o meu coração é espanhol, que o meu coração é punk rafeiro, é Ramones vertidos para castelhano, é esperar à saída do Colegio Montfort e corrê-los todos a hóstias. Posso aparentar a placidez e a hesitação de um puro sangue da minha terra, mas a verdade é que o meu coração é espanhol, e o ar que respiro tem vogais fortes, e os meus sonhos são de Badajoz, de Pinar de Antequera, ajoelham-se na terra, chegam a Teruel tornados delírio – rápidos, de mil mães choradeiras, amargamente. Eles que bordam com paciência.

Foi o meu corpo que fez esta escolha: onde estão as lágrimas, onde está o sangue, onde estão os campanários perdidos, os crucificados de Castilla-La Mancha, as vozes entrecortadas das raparigas espanholas e as tardes cálidas nos entroncamentos? Onde estão os ateliês, os bares sem pena, as virgens emancipadas? Onde está a falta de descanso, os olhos com o coração às costas, o querer inevitável, impetuoso, a suave organização e a despedida efusiva? Aconteça o que acontecer, é aí que eu andarei sempre à procura.

Meu amor secreto: eu quero apenas dizer que nunca me fui embora. Estou aqui, no mesmo sítio, e as histórias da minha avó ainda hoje me arrancam tiras inteiras de pele das costas. E foi contigo que me fiz homem, contigo que saí de casa pela primeira vez. Tornei-me um poeta medíocre, daqueles que não cantam e não choram. Tornei-me numa daquelas pessoas que pensam que já viram tudo, e que por isso não vislumbram um palmo à frente do nariz. Vivo numa casa debaixo da ponte, e acordo muitas vezes a meio da noite com o calor da Andaluzia na fronte, aqueles dedos morenos na nuca – os lábios ciganos no peito.

Querida mãe, mãe da meseta, mãe do sol, eu devia morrer a tentar perceber-te, a morder os teus passeios. Eu devia ter chegado aí ontem – o sítio onde pertenço.


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