terça-feira, abril 26, 2005

Nove de trinta e três

Começara a escrever o meu “Livro Falso”. Todas as noites deitava-me triste, e era a pensar nesse “Livro Falso” que eu adormecia, no “Livro Falso” e nas coisas que algumas pessoas me fizeram e que eu nunca cheguei a compreender. Não tinha dificuldades em adormecer: acho que havia uma ponta de felicidade, uma qualquer espécie de verdade em todas aquelas mentiras – e o meu “Livro Falso” era o monstro daí resultante, um animal de estimação que não dá muito trabalho, que vai pela sua vida e aparece para comer de vez em quando.

Fundara um blogue chamado “A Minha Vida Amorosa”. Nele identificava-me com uma letra minúscula, a primeira letra do meu primeiro nome, o princípio da palavra por que me conheço. Lembro-me que escolhera essa letra assexuada para poder permanecer num limbo identitário face aos poucos que me liam (e sublinho poucos, porque de acordo com um contador que instalei no blogue tive quinze visitas em sete meses). Por outras palavras, eu poderia ser José, eu poderia ser Joana, eu poderia ser Joaquim – eu poderia ser tudo menos isto. E por isso era. E era tão bom poder ser outra coisa.

De certo modo, “A Minha Vida Amorosa” (aquele blogue que entretanto apaguei num acesso de fúria e impotência) era o irmão luminoso do meu “Livro Falso”, no qual eu escrevia ou pensava nas coisas que não ousaria nunca dizer a ninguém, as coisas que não deveriam sair de dentro de mim porque elas constituíam, por assim dizer, o meu último refúgio, o repositório de tudo o que em mim era sagrado – meu, definitivamente meu, só meu. Por isso, “A Minha Vida Amorosa” era essencialmente escapismo e fingimento, e por isso era uma desilusão para toda a gente: um placebo, um foguete que se espalha em cores pelo céu negro, esfumando-se bruscamente em nada. N’ “A Minha Vida Amorosa” eu fingia como Fernando Pessoa, mas isso não fazia de mim um poeta.

E digo isto porque a minha verdadeira poesia se acumulava nas gavetas, acumulava-se dentro de mim, e aqueles postes eram apenas bolhas de pus que surgiam à tona da pele, espremidas quando se tornavam demasiado evidentes. O que eu trazia cá dentro, o que não tinha forma e que eu podia apenas adivinhar todos os dias à hora de deitar – isso tudo ia constituindo o meu “Livro Falso”: a testemunha da minha mentira, a enseada da minha verdade.

Nem tu poderias saber, querido amigo. Apenas que eram tempos muito pouco claros para mim. Imagino-te a apodrecer nessa aldeia dos Cárpatos, e fico triste apesar de saber que estás no cenário do teu livro favorito. Sei que à noite ouves os uivos dos lobos e sei que as pessoas seguram candeias para alumiar o caminho. Sei que quando acordas para trabalhar há cheiro de alfazema, e sei dos paralelepípedos de feno que aquecem as manjedouras. Sei do teu filho que cresce nos bosques. Sei da tua esposa que entretanto se tornou mulher. Eu estou há três anos a esta janela, mas sei isso tudo. Um dia, tu e eu seremos velhos.

É tudo uma questão de regras, sabes. As pessoas às vezes querem mudar as regras nas suas vidas, ou então querem mudar as regras em relação a mim. Quando o Verão chega, chega a altura de eu ouvir isto: “Tenho novas regras”. Ela diz que tem novas regras. E eu fico aqui, mergulhado neste tanque de mel. É por isso que o meu “Livro Falso” se tornou natural. Orgânico. Tão desordenado e caótico como “A Minha Vida Amorosa” era metódica, calculada, instrumental. Aquele tão puro, esta tão pornográfica.

No fundo, estou farto de todas estas fotografias de mim. Está tudo tão errado. Há-de haver um tempo, para além do mundo, para além do seu significado, em que as coisas boas podem sair e fazer com que tudo fique bem. O bem podia sair do fundo da terra, e a terra seríamos nós. E o bem podia curar-nos. Entretanto, sou mais um a viver num estado de guerra.

quinta-feira, abril 21, 2005

Oito de trinta e três (Creedence Clearwater Revival)

Eu quotidiano andava descalço de jardineiras torrando ao sol, a uma milha apenas de Texarkana.
O som do algodão a restolhar ao vento, o algodão a picar os meus pés – criança desajeitada, as outras crianças brincando na curva da estrada. Eu quero saber isto: para onde vão de manhã as almas penadas que sobem como arrepios pela minha pele acima, à noite, quando o algodão arrefece e os brancos roncam tanto como os negros?
Os passos ao longo da cerca e a enorme planície do Louisiana, e os andarilhos que passam e os cegos que passam sem ver os passos que deixam, e os espantalhos e os espanta-espíritos e o vento soprando ao longo dos campos de algodão, o sangue das mãos dos negros, as costas cortadas de chicote.
Eu quotidiano andava descalço de jardineiras torrando, a cabeça desprotegida e os olhos na linha de água em frente, a uma milha apenas de Texarkana - e agora estou de novo a regressar a casa para ti.

sábado, abril 16, 2005

Sete de trinta e três

Deixámo-la, desorientada mas sorridente, em frente a uma loja de pesticidas em Les Halles. Na prática, empurrámo-la para fora e arrancámos com urgência naquele carro malcheiroso onde dormíramos os três tantas noites, e a última imagem que tenho é da multidão de Les Halles a engoli-la e do seu sorriso imaculado, infantil - os olhos a procurarem uma referência enquanto segurava os sacos de plástico com todos os presentes que lhe havíamos dado: chocolates, flores, metade do dinheiro que nos restava.

O meu melhor amigo ia casar-se com uma princesa cigana de catorze anos cujos antepassados haviam pausado as suas transumâncias algures num ribeiro nas faldas dos Cárpatos, e por isso havíamos decidido atravessar a Europa de automóvel até ao altar. Inevitavelmente, acabáramos em Paris, não só devido a um conjunto inacreditável de enganos nas auto-estradas mas também porque fora em Paris que passáramos os melhores momentos da nossa amizade: aquele Inverno de vento e a Place de S.Michel e o meu pobre coração abandonado; o parque André Citroën; os cartazes com a Jane Birkin; a praceta em Ménilmontant onde Brian de Palma filmou a cena do «Bolero», no filme Femme Fatale.

Foi em La Rochelle que a apanhámos. Nós estávamos a pedi-las. Choveu em La Rochelle o tempo todo que lá estivémos, e nós íamos todos os dias para o porto a ver as cargas e descargas, os grandes navios e os contentores metálicos que formavam labirintos no chão cimentado: sentados por detrás de grades na erva suja e encharcados pela chuva miúda que o vento atirava em todas as direcções; bebíamos cerveja, pensávamos com temor naquele Atlântico negro diante de nós, voltávamos para o bairro dormitório onde estacionáramos o carro. Não falávamos muito: eram os nossos últimos dias juntos, e em breve eu entregaria o meu amigo num casamento negociado à lei da bala numa noite de póker.

Depois de a apanharmos (e não vou dizer como) ela passou a andar connosco e a beber da nossa cerveja, que carregávamos na mala do carro junto a um saco de cuecas que íamos deitando fora à medida que usávamos. Os fatos do casamento estavam enrolados em sacos do lixo e colados ao tecto do carro com fita adesiva; algures no carro estava ainda uma lâmina de barbear com a qual nos tornaríamos mais apresentáveis no dia da boda. Não tínhamos vontade de chegar àquela pequena aldeia cigana. Todo o nosso dinheiro ia para gasolina e para pão, que comprávamos invariavelmente em bombas de gasolina e consumíamos seco e simples, fatia a fatia, com pressa de engolir e sem paciência para mastigar. Dávamos-lhe do nosso pão, ela sorria sempre, falava pouco: depois às vezes um de nós fazia amor com ela e o outro esperava fora do carro, dando um passeio pela mata à beira da estrada na qual calhara pararmos.

Acho que ela nos agradecia. Não pela atenção descuidada que lhe dávamos, mas por todos aqueles quilómetros de boleia, quilómetros e quilómetros de uma distância que a separavam de La Rochelle e que se acumulavam dando-lhe segurança, e quanto mais nos afastávamos mais ela parecia ficar contente. Talvez fugisse de um casamento combinado em cima de uma mesa de póker, talvez precisasse apenas de mudar de direcção - ou de dizer não a uma terra de barcos que passavam.

A verdade é que chegámos a Paris e em Paris a nossa bondade esgotou-se, talvez por pressentirmos que Paris era a última paragem e a partir daí o casamento era real, a nossa separação incontornável. Por isso em Paris dissemos-lhe adeus, escolhemos Les Halles e abrimos-lhe a porta para a cidade. Não a voltámos a ver.

No último dia em Paris fui encontrar o meu amigo debaixo de um submarino. Tínhamos ido passear à Cité des Arts no nordeste da cidade, e eu andava encantado com as coisas que inventavam para as crianças se divertirem. Passáramos o dia a falar de Júlio Verne, de queijo. Bebêramos as últimas cervejas da mala do carro. Paris estava cinzenta e morna, já não havia sítio nenhum na cidade que nos pudesse acolher, confortar, surpreender. Não no estado em que estávamos. Lembrei-me de um pequeno apartamento de estudantes junto à Place d'Italie onde aprendi que todos os amores morrem, tudo estava silencioso debaixo do submarino à excepção dos esporádicos sons aquáticos pós-modernos que saiam da gigantesca esfera metálica ao nosso lado. Eu estava quase a sugerir um café ou um chocolate quente para celebrar o fim da cerveja, um regresso aos bulevares - St.Germain uma última vez antes de nos separarmos, antes de morrermos - e foi nessa altura que reparei que os ombros do meu amigo se sacudiam enquanto ele chorava. Ele dizia o que é que me aconteceu, o que é que me aconteceu.

segunda-feira, abril 04, 2005

Vinte e sete de trinta e três

É com uma cara de espanto que os condutores morrem nas estradas em Portugal (morrem como tordos mas porque é que tantos tordos morrem?) - eu vejo-os da minha janela alta e registo com ironia amarga as caras que eles e elas fazem quando morrem: a admiração, o «porquê eu?», o súbito medo, e se dizem que nos momentos que antecedem a morte toda a vida nos desfila em frente dos olhos então eu aposto que eles estão outra vez na Praia do Ribatejo numa tarde de Agosto, os mamilos erectos, uma garrafa de cidra mergulhada na ribeira para arrefecer.

As pessoas acorrem às janelas ao mínimo sinal de uma travagem brusca, e também eu levanto os olhos do que estou a fazer para entreabrir as cortinas e ver as pessoas a viajar em pensamento até ao regaço da adolescência, aqueles tecidos de algodão colados à pele pelo suor - o sol rendilhado e ofuscante entre as folhas das árvores - e eu era feliz, eu era feliz. Choca-me em especial o silêncio de poucos segundos que se segue ao embate - aquele silêncio petrificado, incrédulo, exangue, sem oxigénio - e depois os gritos, os alarmes, as lágrimas, os transeuntes que correm, o sangue que cria padrões irregulares, ensopando os tecidos e os estofos.

E os olhos das pessoas nos momentos antes do embate lembram-me os olhos das raposas assustadas à noite na estrada - e tantas vezes que eu escrevi sobre as raposas assustadas à noite na estrada, tantas vezes que tentei ganhar dinheiro e fama com essas peles arrancadas, com esses olhos esborrachados, esguichantes - suplicando piedade, pudor, moderação, paciência, tudo o que eu não tive. Por isso as pessoas na estrada quando morrem morrem também por minha culpa, e eu morro também com elas. E a praia fluvial da Praia do Ribatejo vai ser só nossa nas tardes de Agosto quando os mosquitos zumbem à tona de água, quando a areia suja brinca entre os nossos pés nus, quando eu desenlaço a fita que segura os seus cabelos, negros, linda, lentamente.

E o asfalto vai dar a outra face, e os motores vão rugir, e as porcas vão ser apertadas e depois saltar subitamente, e rápidos sibilantes jactos de ar comprimido vão soltar-se aqui e ali e arrotos vão ser dispensados - gargalhadas rebentando - e a minha mãe e o meu pai também vão nesses carros e os carros vão passar aos domingos debaixo das nossas janelas, tantas máquinas assassinas em movimento que é um milagre que as almas não subam ao ritmo da pulsação de um beija-flor - e as crianças embaladas nas encomendas nos berços nos braços vão olhar aqueles carros e vão desejar um dia ser assim. E vão sê-lo, e fumar charutos aos treze - pequenos césares de olhar maldoso, tintins de pólos e chaves ao pescoço, um dia desonrando as nossas irmãs, as nossas filhas.

Há quem feche os olhos: eu por vezes também fecho os olhos. O momento em que os olhos se fecham - inócua protecção, como as crianças que tapam a cara e se julgam invisíveis - esse é o momento em que a coluna da direcção se precipita como um arpão contra a caixa torácica, é o momento em que o airbag se despoleta, em que as rodas traseiras dão um pequeno pulo à medida que, centímetro a centímetro, o motor é esmagado e os parafusos e rebites são projectados a metros de distância, caindo aos pés das avós que vão ao supermercado. Todos estão estarrecidos, satisfeitos - a fita do cinto de segurança deixa uma longa lesão ao longo do peito e essa lesão vai demorar a passar - mas isso é o que menos importa porque o resto, o resto - o resto são bonecos orgânicos a desfazer-se e ecossistemas em colapso, o resto são baços rebentados e maxilares metidos para dentro, o resto são pernas estilhaçadas e articulações à deriva. Pensamentos com areia suja. Aquela rapariga que gostava de ti. Aquele rapaz que te tratou mal. Aquela noite tépida de Verão no castelo. Aquela face encostada ao teu peito, subindo e descendo com a tua respiração.

Também eu passei pela Praia do Ribatejo, um dia destes: estava sentado numa manta de tartã, e nas minhas mãos um livro francês era decantado, escorrido, bocejado, os caroços cuspidos. Tinha um cesto com romãs aos pés. O ribeiro gorgolejava entre as pedras, eu tinha: sítios na minha cabeça, sítios dentro de sítios, bosques e ribeiros onde molhara os pés, mãos dadas com uma rapariga que amava. O sol lambia languidamente a minha testa, os sítios onde antes cabelos pontificavam e onde os meus dedos se demoravam numa comichão que era o tempo a passar, a velhice, Deus, promessas de prazer.

Também eu passei pela Praia do Ribatejo: era Agosto como todos os dias, e tinha um cesto de romãs mesmo ali junto aos pés, e as tuas mãos demoraram-se na minha testa, os teus olhos nas rugas da minha face, sem dor, e por momentos deste-me esperança, e o meu livro caiu e depois levantaste-te e mergulhaste no ribeiro, e eu fui buscar-te ao fundo, os limos agarrados ao teu corpo cor de leite. Praia do Ribatejo: índios espreitando por entre as copas dos chorões que bebiam da torrente fresca, o teu corpo nu molhado poisado no tartã, os beijos que eu nunca te dei.

E depois o regresso, num súbito, num baque: o som de uma travagem, o asfalto, o céu carregado de chuva, e o meu carro a despedir-se de mim com os guinchos do metal torcido, da borracha queimada, do plástico sobreaquecido. Um corpo poisado docemente no meu pára-brisas rachado, os caracóis espalhados ao longo das linhas dos estilhaços, o escalpe aqui e ali arrancado e um lento gotejar de sangue explorando trilhos ao longo do ecrã que agora passava o meu filme. Dentes - de leite - cravados no vidro. Uma menina. O meu pé ainda no travão.


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