Seis de trinta e três
Nesse Verão, eu vivia num quarto com vista para essa colina. Para ver o mar eu precisava de ir à cozinha, que partilhava com um rapaz chinês que não via a mãe há dois anos, e com um rapaz inglês que tinha a mãe doente algures na Cornualha. O meu quarto era bastante sossegado: tinha um excesso de moscas devido às pombas que se empoleiravam num telhado em frente, mas em compensação, como vivia mesmo ao lado de um pequeno hotel familiar, tinha todos os dias (especialmente quando o vento estava de feição) o cheiro reconfortante do chá com leite acabado de fazer. Alguém tinha deixado uma pequena tábua para manter a janela aberta – nessa tábua tinham escrito que a janela tinha mais de cem anos, o que era um pouco difícil de acreditar. Às vezes sentava-me à janela com os pés de fora, apanhando o sol da tarde e o vento frio que vinha do Penglais Park.
Nos dias de maior calor, saía de casa e andava uma vintena de passos até os meus pés tocarem o Mar da Irlanda. Deitava-me naquela praia de pedras negras, e deixava que o sol fraco acariciasse a minha pele manchada, irregular, cheia de pêlos. Por vezes, punha uns óculos especiais e dava umas quantas braçadas naquela água gelada e turva: diziam que as fezes do gado e os minerais nocivos das minas eram arrastados pela chuva até ao mar. A minha pele começava a reagir, tingindo-se de vermelho em pequenos aglomerados junto aos meus mamilos, ao meu pescoço. Voltava para casa, os pés abraçados por minúsculas pedras negras que deixavam um rasto até à minha cama.
Eu tinha começado a dormir com um bloco de notas mesmo ao lado da cama. Costumava acordar várias vezes durante a noite para escrever frases e palavras confusas, supostamente ideias indispensáveis para o desenrolar dos meus argumentos. Acho que o meu cérebro estava a expectorar. De manhã acordava desfeito, lavava a cara, comia cereais de chocolate com sabor a plástico, olhava o mar durante alguns minutos, vestia a velha t-shirt e os velhos calções, começava a trabalhar.
Normalmente, conseguia ter as coisas terminadas antes de jantar. Tinha uma vizinha botswanesa que costumava aparecer com alguma frequência: ela lavava as suas roupas duas ou três vezes por semana, e da minha janela eu via-a com o cesto a dirigir-se para a lavandaria. Tomávamos chá na cozinha, falávamos de várias coisas, víamos episódios do Fawlty Towers, ela contava-me do seu flatmate psicopata que chegava à cozinha e lhe dizia “estás com o período, não estás?, consigo cheirar o teu período” - coisas assim.
Outras vezes, quando ela não vinha a visitar-me, eu costumava sair de casa ao pôr-do-sol e ia passear e ouvir música. Ouvia Rosie Thomas, Sun Kil Moon, Red House Painters, Nick Drake, The Smiths, Elliott Smith, Josh Rouse. Adorava os beijos do sol na minha cara. Calhava deambular pelas ruas já escuras quando começava a chover; eu trazia uma camisola com capuz e, na minha mente, tornava-me mais um fantasma daquelas terras. Caminhava até à estação, até St. Michael’s, até à Escola de Artes, até aos hipermercados. Percorria a North Parade, descia a Loveden Road, a chuva caía. Gostava de ver os nomes misteriosos que as pessoas davam às casas: Tremor, Glaenwern, Finmoor, tantos que me esqueci mas que na altura me maravilhavam.
Minhas memórias são como uma pedra que eu levanto, para encontrar um mundo de vida e de terra húmida em baixo. A minha mãe, de quem eu gosto muito embora não o diga, dizia-me que devia levantar as pedras com cuidado. Lacraus, coisas assim. Por isso eu sempre me habituei a levantar as pedras apenas para dar uma espreitadela; no entanto, isso levou-me, por insatisfação e tendência para o abismo, a levantar muito mais pedras do que as outras pessoas.
Ontem, quando escutava Rosie Thomas, lembrei-me do dia em que entreguei a tese. Aquilo era já a terceira versão do texto, e eu tinha chegado a uma altura em que sentia que não conseguia fazer melhor. Quase esperava o som de trombetas ou uma orquestra a tocar enquanto entregava, mas tudo foi rápido e impessoal. Recebi um canto de folha com um carimbo. Uma espécie de comprovativo. Guardei-o na minha mala e saí. Estava um daqueles dias de sol esplendoroso, mas soprava uma brisa fria e subitamente senti-me sozinho, muito sozinho. Caminhei até uma pequena clareira orlada de árvores altas, na parte oeste do campus. Sentei-me numa sombra e senti frio. Deixei-me ficar sentado e senti a relva húmida debaixo das minhas nádegas. Fechei os olhos. Tinha um monte de coisas pendentes, assuntos que, imerso no trabalho, tinha adiado mas que agora teria de enfrentar. Não havia desculpas e eu tinha de tomar decisões, lutar pela minha posição e pela minha vantagem competitiva. Em suma, tinha de começar a “fazer por mim”. Teria de começar por apanhar um avião e voltar a Lisboa.