domingo, agosto 08, 2004

(VII)

A minha participação no My Love Life acaba aqui. Obrigado pela atenção e pela companhia.

sábado, agosto 07, 2004

Sete maneiras de ir dormir (VI)

Quando me vou deitar as crianças começam a chegar. São muitas, e eu não sei de onde elas vêm. Eu fico sentado na cama, agora verdadeiramente apanhado de surpresa, e as crianças vão-se juntando à minha volta. Estão sempre a olhar para mim.

Os cabelos delas são cinzentos, velhos. Os seus olhos não estão exactamente aqui. São os olhos de quem não está vivo. As crianças estão vestidas com as roupas com que foram enterradas.

Elas perguntam-me como é ser adulto, como é crescer. Eu respondo-lhes e elas ouvem-me com atenção.

‘Isto aqui também não é fácil’, dizem elas em uníssono. Elas falam-me, sempre a uma só voz, das coisas que não podem fazer, de como a sua vida se tornou um ciclo, um eterno retorno.

E às vezes eu falo e depois elas falam, mas a maior parte do tempo estamos em silêncio e elas continuam de pé, à volta da minha cama, pálidas e olhando-me sem pestanejar. As horas passam e finalmente eu decido-me a tentar adormecer. Elas não mostram vontade de se ir embora, mas também não me impedem.

Quando fecho os olhos eu oiço-as pela última vez, e todo eu me contorço num imenso arrepio:
‘Podes dormir, mas nunca mais irás sonhar’.




(inspirado em 'Suffer Little Children', The Smiths)

sexta-feira, agosto 06, 2004

Sete maneiras de ir dormir (V)

Quando me vou deitar a mosca está sentada na minha cadeira, pernas peludas cruzadas, as asas pegajosas em descanso. Ela está a olhar-me, e pequenas patinhas junto à sua cabeça esfregam ocasionalmente o sítio onde está a sua boca. Ela está a excretar algo verde, ácido, nauseabundo, que pinga no chão do meu quarto.

Eu dirijo-me para a cama, tentando aparentar normalidade. Programo o despertador e arrumo com cuidado as pantufas.

‘Espero que estejas consciente de como é escuro o sítio para onde vais’, diz ela, e eu estou a dizer que sim com a cabeça, estou a deitar-me, e depois ela levanta-se e aproxima-se de mim.

‘Estarei à tua espera quando acordares’, diz ela, e ajeita os meus cobertores, e dá-me um beijo com a sua boca horrível, e pingos verdes caem na minha almofada, na minha cara.

quarta-feira, agosto 04, 2004

Sete maneiras de ir dormir (IV)

Quando vou dormir abro os olhos e tudo à minha volta é a grande noite da América. Eu devia ser James Taylor, ou John Denver, ou Jack Kerouac, ou Henry David Thoreau - em vez de ser isto. Estas estradas deviam, um dia, poder levar-me até uma casa na pradaria. Eu devia arder em febre debaixo desta cúpula de estrelas. Eu devia ter nascido em todos estes sítios, devia poder deitar-me e dormir em todos os metros quadrados desta terra.

Estacionámos a carrinha em pleno deserto e dormimos na caixa aberta, enrolados em mantas. Em redor da carrinha vamos ardendo arbustos para afugentar as cascavéis. Eu sei que Dean está nu por debaixo da sua manta.

A certa altura acendo a lanterna e começo mais uma vez a ler a carta: 'Na primeira vez que falámos surpreendeu-me a tua inacreditável fragilidade. Era como se estivesses prestes a desfazer-te, e os teus olhos eram os olhos das raposas assustadas à noite na estrada. Tinhas um quarto em Paris, estudavas pragmática, latim e outras coisas que eu não entendia. Em ti eu só via solidão, supermercados baratos, noites a chorar. Surpreendeu-me também que apesar de tudo continuasses a...'

Dean é um animal. Vamos all the way até ao México. Talvez fiquemos por lá por uns tempos, quem sabe. Eu gostava de ir viver no bayou durante umas semanas, oferecer o corpo aos mosquitos, molhar os pés nos grandes rios, ter medo dos crocodilos.

Ou comer serpentes ao luar. Ou cheirar as flores todas, ser cilindrado pelo sol. Deus, vou ter saudades disto. Mas preciso tanto de continuar o meu caminho.

terça-feira, agosto 03, 2004

Sete maneiras de ir dormir (III)

Quando me vou deitar ela sai de uma sombra, e depois sorri.
'Vieste'.
'Pois vim'.
'Não me lembro de te ter convidado', digo eu, sorrindo.
'Também não me disseste que não viesse', responde ela, e passa a mão nos meus cabelos curtos, escassos, e olha-me profundamente, e eu abandono-me.

Passamos a noite deitados, entre os lençóis, a conversar. As nossas pernas nuas tocam-se. Não fazemos amor porque o amor já está feito.

Há algo que nos une. Eu soube-o logo na primeira vez. Eu renegaria tudo o que disse, tudo o que escrevi. Eu queimaria tudo, deixaria tudo para trás. Por apenas ela aqui perto.

Este é diferente porque é nosso. Este é diferente porque é meu, porque sou eu, porque me calhou a mim. Porque afinal estou vivo. Quando ela caminha pelo quarto, por entre os poemas que eu deixei espalhados, eu vejo que ela desenha um padrão, eu vejo que ela sabe onde quer ir. E eu não tenho medo, eu não tenho palavras, eu só quero que isto resulte.

Boas ideias, grandes ideias, finais felizes. Adormeço e ela diz que me ama. Diz-me assim: 'Amo-te', e sorri, e dá-me um beijo pequeno. E quando acordo a nota na minha cama vazia diz 'Obrigado pela melhor noite da minha vida', e eu sei a minha sorte demasiado bem por isso adivinho o que vem a seguir.

Porém, ao contrário da flor da minha vida, não deixarei que este texto se corrompa.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Sete maneiras de ir dormir (II)

Quando entro no quarto para me ir deitar todo o mundo que está lá dentro salta e grita, e imediatamente o 'The Sidewinder Sleeps Tonite' dos REM começa a tocar na banda-sonora. A festa começa comigo, acabará quando eu quiser. A festa é minha, embora eu esteja surpreendido enquanto ando à volta pelo quarto a cumprimentar todas as pessoas (incluindo pessoas que não via há anos, pessoas que entretanto morreram, pessoas que entretanto mudaram de sexo). Confettis começam a cair em cima das nossas cabeças e o 'Automatic for the People' parece estar a tocar vezes e vezes sem conta (e eu sem me importar), e para esta cena o realizador opta por um plano-sequência, aos zigue-zagues, demorando-se alguns segundos junto de cada grupo de duas ou três pessoas que falam, apanhando pequenos segmentos de conversa.

Como vieram parar aqui, eu não sei. Mas são todos tão amigáveis que eu não faço muitas perguntas sobre os detalhes da festa, e tento entrar no espírito enquanto seguro uma garrafa de cerveja junto às faces, não para me refrescar (porque o quarto está tão frio que o gelo forma placas nas paredes e no chão) mas para sentir que estou aqui, que ainda estou acordado. E o 'The Sidewinder Sleeps Tonite' dos REM começa a tocar outra vez e é apenas mais uma noite e depois, numa conversa em que não sei porquê me encontro, Proust é introduzido, insultado, louvado (não necessariamente por esta ordem), e depois alguém diz que desaprova relações inter-raciais, alguém engole uma azeitona, alguém cospe uma azeitona para o chão.

E as raparigas beijam-me na boca quando me vêem, e eu conheço-as há tanto tempo e elas têm o hálito da morte, os dentes que me mordem os lábios são os dentes de alguém que ri, de alguém que devora cadáveres. E eu estou contente por se terem lembrado de mim de modo que bebo um pouco mais, conversas e música e confettis por todo o lado, e as pessoas atendem os telemóveis e ficam muito tempo a falar e depois choram ao telefone e nunca mais são as mesmas. O mundo fora deste quarto continua a ser algo que me ameaça e cujos pormenores eu prefiro desconhecer.

De modo que às vezes a música pára e fazemos minutos de silêncio e depois as pessoas vão-se chegando a mim para me contar os seus segredos, e quanto mais as conversas se aprofundam mais eu vejo que vedações são instaladas, numa rede de complexidade que só confunde, só serve para distrair. E quando as pessoas se confessam elas às vezes olham por cima do meu ombro para o realizador, em busca de encorajamento, e ele apenas diz 'keep rolling' (palavras que posteriormente serão apagadas na edição) e todos estamos a ir longe de mais, ou talvez não longe o suficiente.

De qualquer modo, o meu dia acaba hoje. Hoje começa a minha longa noite, portanto não terei oportunidade de tirar consequências sobre tudo o que está a ser aqui dito.

E depois começa o 'Find the River' dos REM e eu estou à janela a conversar com alguém que costumava significar tanto para mim, e a lua lá fora é atravessada por corvos, morcegos, vacas, e vai ser mesmo uma longa noite e até já fiz as minhas malas, mas eu digo a essa pessoa que costumava significar tanto para mim que julgo que estou preparado para esta longa noite. Alguém arrasta pelo quarto o corpo moribundo de um anão vestido de pirata, o corpo é atirado para um canto, algumas pessoas vão buscar garfos, a tortura é levada a cabo, etc.

E depois começa o 'Find the River' dos REM outra vez e as pessoas vão saindo e eu estou a pensar nessa longa escura noite e adoro os meus amigos e tudo isso, adoro mesmo, e depois quando todos saíram eu vou apenas lavar os dentes, considerar-me ao espelho durante alguns minutos, decidir que não me odeio menos do que me odiava ontem. Tenho a impressão que há demasiadas pessoas com uma chave para a minha vida, e julgo que as devia poupar ao que os Joy Division e J.G. Ballard chamariam 'a exibição de atrocidades'.

domingo, agosto 01, 2004

Sete maneiras de ir dormir (I)

Quando me vou deitar ela já está no chão do meu quarto, impossibilitada de ficar em pé, e horríveis sons saem de dentro do seu corpo. Tudo no organismo dela se está a romper: eu não vejo nenhuma ferida mas ela está a esvair-se com grande rapidez, sangue saindo em quantidades incríveis de todos os seus orifícios. O chão do meu quarto é o mapa de sangue dos sítios por onde ela se arrastou.
Eu ajoelho-me no chão e abraço-a e começo a chorar baixinho. Ela diz por favor faz com que isto pare por favor faz com que isto pare, e eu seguro-a com força e choro e digo-lhe desculpa, desculpa querida, e pedaços de carne começam a deslizar de dentro da vagina dela e a dor vem em ondas. E eu sei quando as ondas chegam, porque oiço os ruídos que os seus órgãos em auto-destruição produzem.
Pouco depois ela está incapaz de produzir palavras e eu continuo a segurá-la, ajoelhado no chão do quarto, no meio de um imenso caudal de sangue. Estou a fazer-lhe festas no cabelo e as minhas mãos estão manchadas e ela está a olhar-me e a tentar sorrir: os seus dentes violeta, a sua boca um buraco gorgolejante por onde ela tenta respirar.
Quando a última onda a atinge o mundo já se retirou de mim e continuo a abraçá-la. A sua mão, que batia espasmodicamente no chão, pára subitamente. E os helicópteros chegam e iluminam-nos com holofotes fortíssimos, e o vento faz com que os confettis se agitem em turbilhão à nossa volta, alguém diz ‘Corta!’, eu desisto de tudo, as Forças Especiais irrompem pelo quarto a gritar.


(inspirado em ‘Glamorama’, de Bret Easton Ellis)

Madrugada 4/3

Quando acordo ela está pendurada pelo pescoço numa das traves do tecto do meu quarto, e a sua língua azul está descaída, morta, e há leves rastos de sangue seco a partir dos seus olhos vazios. Eu sento-me na cama e vejo a sua camisa de dormir rasgada, o peito e o pescoço furiosamente arranhados numa tentativa de apressar a morte.
Uma cadeira está caída ao lado de uma mancha escura no chão, o sítio onde o sangue dos seus pulsos abertos coagula, congela, e eu estou a pensar que não é possível ela ter-se enforcado com os pulsos naquele estado – cortados de uma forma tão profunda, tão metódica, tão bárbara.
Terei sido eu? A noite passada é apenas uma mancha na minha memória. Levanto-me e reparo que os pés dela estão a escassos centímetros do chão. Os dedos azulados apontam para baixo, como se estivessem a tentar apoiar-se em algum lado. Talvez ela não quisesse morrer.
Quando lhe toco, um enorme vibrador sai com um som obsceno de entre as suas pernas e cai no chão, rolando até tocar nos meus pés.
Precipito-me para a janela e abro as cortinas e a luz inunda o quarto, e quando me volto para trás, com uma ligeira esperança, ela ainda lá está.


Free Hit Counter