A equipa portuguesa de futebol ganhou porque antes das partidas eu encomendava danças de voodoo a uma vizinha para que os espíritos intercedessem favoravelmente, e nas manhãs a seguir aos dias de jogo ela vinha bater à minha porta e olhava-me com uma cara sorridente dizendo: "See? It worked!"
E nunca cheguei a saber de que se tratavam essas danças mas como o segredo era um factor imprescindível eu nunca perguntava nada, e continuava nas vésperas dos jogos a pedir-lhe que se pudesse dar um jeitinho lá com o seu voodoo seria óptimo. E por isso, mas também por não me importar muito com o futebol, eu nunca estava nervoso durante os jogos - sentia-me como se estivesse a ver uma gravação em vídeo de uma série dos anos 80 (daquelas em que o McGyver se conseguia sempre safar da prisão e libertar uma aldeia indefesa das garras de um regime militar opressivo, num país sul-americano não identificado).
À distância, as dores e as alegrias do futebol pareciam-me cenas de um teatro cujo guião eu sabia demasiado bem, e perder seria sempre pior do que ganhar e eu não sei porque é que ser vencedor tem necessariamente de ser melhor do que ser derrotado. O meu pequeno, pobre país, que eu amava como uma pessoa ama os seus pés, agitava-se e festejava e, pelo menos uma vez, desfrutava do gozo de estar no topo do mundo, acima de todos os outros - como se isso, afinal, valesse de alguma coisa.
De modo que nesses dias, atingido por uma súbita febre de futebol (ou simples desejo de escapar), eu jogava praticamente dia sim dia não, e todos os dias acabava com dores nas virilhas e joelhos esfolados - e adorava esses joelhos em sangue porque me faziam lembrar quando era criança, quando o corpo ficava de facto ferido devido a essa sede quase assassina de viver. Sempre admirara os miúdos que não tinham medo de cair no chão, aqueles para os quais a competição era apenas uma outra forma de ter um pesadelo: uma coisa à qual não se dá demasiada importância, mas igualmente uma coisa à qual não se pode escapar.
No final dos jogos, ao fim da tarde no campus deserto, eu demorava-me pelos balneários vazios, apreciando o silêncio puro e olhando para os meus pés cheios de bolhas, pensando naquele país que me matava e onde estavam as pessoas e as coisas que ainda me poderiam manter vivo. E nessas alturas, acabado de sair do duche, os músculos doridos e uma ou outra nódoa negra a despontar, eu queria abraçar essas pessoas todas num único, final, catártico abraço - e depois mergulhar fundo, ou voar bem alto, ou disparar para bem longe, rápido, num raio de luz, como no Dragon Ball.
Pensava, por exemplo, em todas as pessoas que tinha abandonado, em todas as pessoas que sofriam pela minha ausência, e que tinham vindo a sofrer ao longo de todos esses anos devido à minha inconstância, ao meu ensejo de fugir, às minhas dúvidas, à minha altivez. Pensava que isto não era justo para ninguém, e que não havia culpados e não havia inocentes. Pensava que alguma coisa tinha corrido mal, alguma coisa tinha corrido mal mas a culpa não era só minha.
E não queria pedir perdão por nada, queria apenas que todos, num acordo súbito, numa espécie de revelação suave mas decisiva, percebêssemos a lógica interior deste mundo humano onde nos magoamos uns aos outros apenas por respirar, onde nos batemos usamos chupamos incendiamos, onde acabamos sozinhos, face ao acumular de assuntos não resolvidos. Em tudo isso eu pensava, sentado nos bancos corridos dos balneários vazios, o silêncio e os ventiladores, o vapor dos duches, os cacifos rebentados, os meus pés deformados. A milhares de quilómetros de distância, o meu país gritava e saltava a uma só voz, fazia estremecer o solo e agitava a superfície das águas de todos os lagos e de todas as piscinas, num protesto que era de glória ou era de birra, ou era de tédio ou era de outra coisa qualquer.
Eu pensava na minha vida desencantada.
Entretanto, no futebol, tínhamos ganho. Ou tínhamos perdido, já não sei bem. Mas tudo continuava na mesma: quem odiava iria continuar a odiar, e quem amava um dia iria odiar também, e novos amores iriam surgir, por aqui e por ali, pequenos amores para pequenas pessoas, grandes ilusões para almas do tamanho do mundo, e a vida até iria ser agradável e tudo isso.
Mas a dor, a dor de milhares de silêncios e torturas não poderia ser refeita por um momento de amor. Pelo contrário, o maior amor seria para sempre maculado por um ínfimo instante de dúvida. E isso era a coisa que para mim era mais injusta, naqueles dias em que eu jogava futebol no intervalo dos meus estudos, para esquecer sobretudo, para não ter de sentir necessidade de estar a fazer outra coisa qualquer.
Quando tudo acabou, fui visitar a minha vizinha para lhe agradecer pelo voodoo. É curioso que ela tenha aceite meter-se com aqueles espíritos todos (aqueles espíritos cujas mudanças de humor poderiam tornar-se fatais) sem receber nada em troca e apenas porque eu lhe tinha pedido uma vez, meio a brincar. Havia pessoas que diziam que ela gostava de mim.
Ela recebeu-me no seu quarto desarrumado e perfumado, os instrumentos do voodoo espalhados no chão no meio das fotocópias, das revistas cor-de-rosa, das coisas da maquilhagem. Eu sentei-me na cama dela a ler as últimas notícias das celebridades enquanto ela escrevia umas coisas no computador para a sua dissertação sobre o Ruanda. Depois eu perguntei-lhe: "Could you bring the spirits back into my life?" e ela riu-se e respondeu "I'll see what I can do", e levou-me à cozinha (o mar revoltoso em mais um anoitecer naquele Verão frio) onde me ofereceu chá e dois, três, quatro dedos de conversa.