sábado, julho 31, 2004

My Last Dream

Sonho que estou a ser devorado, nu, inteiro, vivo, por um dragão do Komodo. Eu devo ter mergulhado de cabeça na boca dele porque os seus dentes estão em redor da minha cintura, a boca esticando-se de uma forma impossível, e porque tudo é tão apertado dentro do seu tubo digestivo eu não posso ver nada. Sinto apenas o fedor asfixiante, os sons obscenos que as contracções dos seus órgãos produzem, as mucosas de encontro ao meu corpo - colando-se a mim, chupando, apertando e sufocando-me num abraço pastoso. Elas segregam líquidos ácidos que me vão queimando a pele; depois, as bactérias começam o seu trabalho, e entram pela minha circulação sanguínea. Eu estou a ser lentamente digerido e não estou a aceitar, mas também não estou a resistir.

O dragão do Komodo está a sentir dificuldades em engolir-me. As minhas pernas continuam de fora e os seus olhos estão vazios, ausentes. O dragão do Komodo não pensa em nada, apenas contrai os músculos do pescoço, empurrando-me milímetro a milímetro para dentro dos seus canais. As suas garras agarram o chão poeirento, a sua cauda dá sacões ocasionais. Os ácidos queimaram os meus cabelos, sobrancelhas, pestanas, atacam agora o meu escalpe, tornam lentamente a minha cara numa máscara líquida, monstruosa, irreconhecível.

Eu sei que as minhas células estão a ser processadas e estão a entrar na corrente sanguínea do dragão do Komodo. Ele está a alimentar-se de mim. Minuto a minuto, ele está a incorporar-me.

Horas depois ainda lá estamos, no mesmo lugar. Os meus joelhos estão apenas agora a sentir a textura dos dentes de tubarão do dragão do Komodo. Eu estou a pensar nas seguintes coisas, sem nenhuma ordem em particular: a minha tese; a rapariga que trabalha na caixa do supermercado onde costumo fazer compras; a versão que a Ani Di Franco fez do 'Used Cars' do Bruce Springsteen; uma salada que um dia fiz para os meus amigos; o amor que senti, o amor que não partilhei; uma salada que tinha na cabeça mas que nunca cheguei a fazer.

A minha dor é lenta, difusa, leve. A partir da sexta hora no tubo digestivo do dragão do Komodo eu já deixei de chorar, estou a apoiar o que resta da minha cabeça nas suas paredes pegajosas - como se descansasse. Os meus ombros estão praticamente dissolvidos e perdi a sensibilidade dos braços. Sinto que a minha coluna está partida em demasiados sítios. Ninguém poderia, neste momento, distinguir os meus olhos, boca e muito menos nariz da confusa massa esbranquiçada em que a minha cara se tornou.

Depois, não me perguntem como, eu oiço a voz do dragão do Komodo. Eu sei que a noite caiu e que o dragão se abateu sobre a barriga, as patas incapazes de suster o seu peso. Eu sei que o dragão está a olhar o mar da ilha de Rinca, e sei que o céu está louco de estrelas, e que milhares de criaturas dormem em buracos no chão. Sei que o dragão do Komodo está a olhar para um satélite que se move no espaço, e sei que dentro desse satélite alguém come bananas em pó. Eu sei isto tudo, e eu aceito isto tudo.

'Julgo que atingi o ponto de não-retorno', diz-me o dragão do Komodo. 'Serás a minha última presa - a minha última conquista'.

E vocês poderiam imaginar-me a sorrir dentro da barriga do dragão, com o buraco disforme onde antes era a minha boca.

Termidor

Chupo o dedo dela às cinco da manhã no comboio para Madrid. Chupo o dedo dela e não a conheço às cinco da manhã e os meus olhos são os olhos de um vampiro. Antes tínhamos estado a comparar notas em diários, fotos, a trocar guloseimas. Chupo o dedo dela e quando o marroquino no banco em frente olha para nós eu faço os meus olhos de vampiro brilhar, ameaço-o com os meus pensamentos, a ameaça resulta, ele volta a fechar os olhos. Chupo o dedo dela como se o dedo dela fosse um pénis e nalgumas fotos ela está num castelo iluminado à noite, vestida como uma fantasma. Cinco da manhã, o comboio causa vertigens, eu não a conheço, ela é maluca, ela não me aceita mas também não me recusa.
Nunca a beijo, apenas chupo e mordo o dedo dela e penso, uma vez mais, no que se vai passar nos próximos dias.
Próximos dias: perdido em Malasaña no meio dos punks, perdido na Plaza Tribunal a embebedar-me com licor de pêssego, na madrugada andar pela Gran Via e as prostitutas que vão para casa e eu a comer donuts na Gran Via. Em Sigüenza, dormir enregelado na casa de banho de um pavilhão desportivo, ver as pessoas todas a ficarem doentes à minha volta. De regresso a Madrid, comer sandes de calamares na Plaza del Sol, mendigar pastilhas, olhar para as raparigas, hiper-ventilar, etc.

Conta-se que, quando ainda vivia em Munique, Hitler costumava acordar todos os dias às cinco da manhã. Costumava atirar pequenos pedaços de pão e côdeas ressequidas aos ratos que habitavam o seu quarto, e era a ver os ratos a lutar até a morte pelos pequenos pedaços e pão e côdeas ressequidas que Hitler se divertia às cinco da manhã em Munique. Ele devia estar a pensar na luta de espécies, em Darwinismo social, nessas coisas todas.

Eu estou às cinco da manhã no quarto do jovem Hitler e vejo-o sentado na cama, olhos a brilhar, aqueles cabelos negros desalinhados, e eu estou em pé num canto do seu quarto, tripas de rato espalhadas pelo chão. Eu sou o visitante de Hitler. Eu estou a pensar em todas as coisas que vão acontecer, todas estas coisas que eu sei. Estou a pensar também em todas estas coisas que eu não suspeito, coisas que não precisam de mim para ocorrer. Eu estou a caminhar pelo quarto miserável de Hitler e ele não me vê porque continua a atirar pão aos ratos, dizendo das ist fantastich e rindo-se batendo palmas. Hitler em Munique coça os tomates frequentemente, não se lava muito. Chego à janela e afasto as cortinas e é isto que vejo.

Vejo uma praia na costa do Mar da Irlanda. Vejo uma praia negra banhada pelo Mar da Irlanda e no centro dessa praia está uma criança magra, pálida, a tiritar de frio. À sua volta voam gaivotas em fúria. Esta criança não sou eu.

Às cinco da manhã no comboio para Madrid todas as revoluções acabaram. A poeira assentou. Homens da luz, substituam as lâmpadas em todos os candeeiros! Para sempre ou até amanhã é exactamente a mesma coisa.

sexta-feira, julho 30, 2004

My Love Life (2/2) (revisto)

(continuação)

Estamos alienados, portanto. Perdidos, impedidos de encontrar um sentido às nossas vidas. E o que fazem aqueles que não são pais, nem pedagogos, aqueles que não têm contacto directo, diário, sustentado, com crianças?  Para onde devemos orientar os nossos esforços? Morrissey decidiu, por volta dos seus 30 anos, que ia ser 'The End of the Family Line' (álbum ‘Kill Uncle’, EMI, 1991):

'No baby pulled screaming  [NB sugere insatisfação por parte do bébé em nascer] / Out into this seething whirl / By chance or whim / (Or even love?)'

De facto, o percurso de Morrissey é marcado por referências bastante amargas em relação às crianças, e principalmente em relação à violência a que as crianças são sujeitas no mundo confuso dos adultos. Nesse capítulo, veja-se o perturbante 'This Night Has Opened My Eyes', em que um recém-nascido é enrolado num News of the World e atirado ao rio (compilação dos The Smiths, ‘Louder than Bombs’, Warner, 1993). Veja-se 'November Spawned a Monster', sobre crianças indesejadas – uma música em que o título diz tudo (compilação ‘Bona Drag’, EMI, 1990). Veja-se 'The Lazy Sunbathers', em que, enquanto as crianças levam com obuzes, adultos apanham banhos de sol (álbum 'Vauxhall and I', EMI, 1994). Veja-se, também, 'Suffer Little Children', com o exército de crianças fantasma (esta música irá inspirar o meu post do dia sete de Agosto) (álbum homónimo dos The Smiths, Warner, 1984).

Qual é a resposta que Morrissey dá àqueles que, pelas mais variadas razões, não se sentem em condições de trazer crianças ao mundo e/ou educá-las? A atenção deve claramente virar-se para o outro pólo do eixo identificado por Whitney Houston: o amor-próprio. As referências de Morrissey ao amor-próprio são incontáveis e a sua posição demasiado complexa para ser analisada em detalhe aqui. No entanto, é importante dizer que, para Morrissey, o amor-próprio não é o impulso de ‘gostar de si’, é antes o resultado da constatação da finitude, fragilidade e insignificância da vida. Isto não deve levar ao desespero (embora Morrissey seja ambíguo neste ponto), mas antes a um impulso criativo, desapegado, que tenta manter uma réstia de encanto na vida:

‘Make no mistake my friend / Your pointless life will end / But before you go / Can you look at the truth? / You have a lovely singing voice / (...) / So sing your life’ (‘Sing Your Life’, álbum ‘Kill Uncle’, EMI, 1991)

‘Cantar a vida’ não é exibicionismo, não é mostrar aos outros como isto é fixe/doloroso (riscar o que não interessa). Cantar a vida é o resultado de uma postura crítica, de dúvida, é o resultado de uma insatisfação, mas é também um sinal de esperança - porque se baseia nas inúmeras potencialidades do que é humano. A nossa vida, actualmente sem valor, actualmente vítima de um sistema que nos alienou, pode encontrar na escrita e na música uma réstia de liberdade (os autores da Escola de Frankfurt, especialmente Theodor Adorno e Herbert Marcuse, encontravam exactamente na arte o último repositório de perspectivas emancipatórias).

Esta é a génese incoerente, desconexa, trágico-cómica de ‘My Love Life’. É que, não sei se estão a ver, a minha vida amorosa não é bem minha. É mais de todos aqueles que sofreram, e de todos aqueles que vão sofrer. O meu amor está misturado com o amor de todas as outras pessoas no enorme caudal de sofrimento em que a humanidade se encontra. Vou mostrar estas ‘canções’ sobre a minha vida até que se me torne insuportável a ideia de que estou a contaminar as pessoas com o que escrevo. Afinal, e ainda que não me esteja a dirigir a crianças, não quero acabar no fundo do mar com uma mó atada ao pescoço.

Às vezes quando estou num pub com amigos bebo cervejas e tenho de ir à casa de banho. Quando estou a lavar as mãos no final, e especialmente quando estou ligeiramente embriagado, atinge-me em cheio na cara um enorme pavor de morrer. Tenho de me agarrar para não cair no chão com esta vertigem fria. Quando recupero, volto para a mesa e minutos depois já estou a rir-me de novo, com outra cerveja na mão.

Julgo que seria uma pena se a nossa caminhada pelo mundo terminasse sem que falássemos destas coisas todas que se passam na vida.

My Love Life (1/2) (revisto)

Imaginem uma cena no fundo do mar: imaginem que estão parados no fundo do mar e que presenciam esta cena: imaginem um homem de cabelos compridos no fundo do mar, debatendo-se, olhos abertos de terror, um pedaço de tecido atado à cintura, e este homem está agarrado a uma corda que tem ao pescoço, e na outra ponta da corda está uma pesadíssima mó de pedra que irá sepultar este homem numa morte horrenda. Agora, se puderem, imaginem uma vez mais o pavor deste homem, a sua lenta asfixia, a forma como os seus pulmões vão encolhendo até ficarem do tamanho de laranjas (devido à pressão no fundo do mar), a forma como uma espuma branca começa a sair da sua boca (sinal de que os pulmões estão a receber água e a entrar em colapso), e depois o sangue, e os seus pulmões explodem, e ele ainda se debate durante longos segundos até a vida desistir dele.

Agora, no final, imaginem que toda esta cena foi ordenada por Jesus Cristo.

Multipliquem o que estão a sentir pelo infinito e ainda estão a anos-luz do que sente uma criança quando lê a Bíblia pela primeira vez, ou (como eu) quando vê uma daquelas edições ilustradas em que as gravuras são ainda mais explícitas do que esta pobre aproximação.

Mateus (18:1-6) conta-nos como os discípulos um dia perguntaram a Jesus qual era 'o maior no reino dos céus'. Jesus pôs diante deles uma criança e avisou: 'qualquer que escandalize um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fôra que se lhe pendurasse ao pescoço uma pedra de moinho, e se o fizesse afogar nas profundezas do mar'. Esta passagem é, segundo o meu conhecimento, a única em que Jesus advoga directamente a morte como punição para um determinado pecado (se tiverem conhecimento de outras, por favor digam).

A interpretação de uma passagem do famoso Sermão do Monte (Mateus 5:38-42) mostra-nos como, com a chegada de Jesus, a doutrina do 'olho por olho, dente por dente', bem presente no Velho Testamento (Êxodo 21:24, Levítico 24:20, Deuterónimo 19:21), é substituída pelo bem conhecido 'oferece a outra face'. No Velho Testamento, Deus era claramente uma entidade disciplinadora e vingadora que fulminava as pessoas por tudo e mais alguma coisa: veja-se o caso do pobre Onan (Genesis 38:8-10), de onde vem a palavra 'onanismo' (identificada, não com muita exactidão, com o acto de masturbação) - Onan terá sido um dos percursores da prática nefasta do coito interrompido. A chegada de Jesus e sua morte na cruz significam em termos teológicos a expiação dos pecados do Homem, e sua subsequente possibilidade de salvação. 

A minha interpretação deste episódio é a seguinte. Jesus parece dar a entender que a vida humana perde o seu valor a partir do momento em que é quebrada uma espécie de regra de ouro: a de não escandalizar as crianças, ou seja, a de não as levar ao pecado (algumas traduções, brasileiras por sinal, falam em 'fazer tropeçar' as crianças, como se estas estivessem num caminho que não deve ser perturbado). O que significará isto? Para mim, parece-me clara esta conclusão: para Jesus, a vida humana apenas tem valor em si enquanto não se perturbar a natural evolução das crianças, contaminando-as com as nossas ideias feitas e com o nosso pecado; em suma, enquanto a vida for dedicada a ajudar as crianças a seguir o seu caminho. 

Mais do que isso, Jesus diz que 'aquele que não receber o reino de Deus como uma pequena criança nunca nele entrará' (Marcos 10:15). Julgo que Ele quer dizer com isto que, nas condições em que nos encontramos neste momento, estamos perdidos. A nossa vida só tem sentido para ajudar aqueles que ainda não se corromperam, possibilitar a sua salvação. O Calvinismo vai recuperar esta ideia com a teoria da predestinação (acompanhada da assumpção, comum ao luteranismo, de que o ser humano é inerentemente mau): quando nasce, o ser humano já está destinado para a salvação ou danação. A vida deve ser vivida com uma ética virtuosa baseada na fé, e na vontade de fazer o melhor possível com o que nos foi dado. Max Weber vai ligar esta ideia de predestinação ao conformismo presente nas sociedades capitalistas, etc. 

Para Whitney Houston (NB não estou a estabelecer comparação entre o pensamento de Whitney Houston e Jesus, apenas a seguir um raciocínio), para Whitney Houston, dizia, a ideia gasta de que o 'futuro é das crianças' é, de uma forma bastante interessante, ligada ao amor-próprio. Na música 'The Greatest Love of All'  (do álbum ‘Whitney Houston’, Arista, 1985, escrita por Michael Masser e Linda Creed) os versos

'I believe the children are our are future / Teach them well and let them lead the way / Show them all the beauty they possess inside / Give them a sense of pride to make it easier'

...encontram a sua sequência no mítico refrão:

'The greatest love of all / Is easy to achieve / Learning to love yourself / It is the greatest love of all' 

Para Whitney Houston, a vida virtuosa  (isto é, com amor próprio) é a vida em que o ser se consciencializou de que a única coisa que vale a pena são as crianças. Mais: devemos ajudar as crianças a encontrarem o seu caminho e a orientarem-nos ('teach them well and let them lead the way') - porque nós, por nós próprios, estamos desamparados e perdidos. Amar o potencial inerente nas crianças é amar-se a si mesmo; é reconhecer, com humildade, que o sentido da nossa vida não somos nós, mas sim um esforço (que deve ser universal) para evitar que as crianças acabem da mesma maneira que nós.

 
(continua)

quarta-feira, julho 28, 2004

Faltas tu

A primeira vez que vieste a Lisboa visitar-me eras apenas uma menina. Lembro-me de ti em Entrecampos à minha espera, no meio dos pardais. Estavas sentada num banco a olhar a estátua da Praça de Entrecampos. Perguntaste-me o que aquilo significava e eu não te soube explicar. Era Primavera, ou algo assim.

Nos autocarros as crianças cantavam, nessa altura em Lisboa. Tu achavas muita graça porque de onde vinhas as crianças não cantavam nos autocarros. Lembro-me do primeiro dia da tua primeira estadia em Lisboa e da forma como parecias maravilhada com tudo. Ao mesmo tempo olhavas-me, tímida. Sorrias. Uma menina. Eu queria tanto mostrar-te a minha cidade.

Deve ter sido por essas alturas que caímos no amor. No Rossio, uma noite, disseste que te tinhas apaixonado por mim "como uma tonta". Estava a chover e o autocarro da madrugada nunca mais chegava. Estávamos sentados à entrada de um restaurante de comida rápida e eu abracei-te. Não havia ninguém por perto, parecia que estávamos a viver num recreio só nosso.

Um dia, numa discoteca chamada Luanda, muitas pessoas morreram já não me lembro bem como. Ou foram incineradas ou gaseadas. Os meus pais tentaram ligar-me porque os pais preocupam-se, sabes, e o meu telefone estava desconectado. Sempre fui perito em pôr os meus pais doentes. Mas a culpa não é tua.

Depois andámos por Lisboa até nos fartarmos. Ou então ficávamos em casa. Nunca fizemos amor. Mas dávamos tantos beijos que os meus lábios ficavam vermelhos, inchados. Não sei se era amor o que sentia. Talvez não fosse. Comíamos muito pouco. Ficávamos deitados na cama a escutar os sons que vinham dos nossos estômagos vazios. Voltávamos aos beijos, etc.

Dizias-me que o vidro da janela do meu quarto tinha um furo microscópico, e era por isso que podíamos ver as luzes do trânsito a passar no tecto. Tu deixavas-me tocar os teus seios. Talvez fôssemos apenas dois jovens estranhos a crescer. Mas isso é o mais próximo que alguma vez estaremos do amor.

Ainda hoje não sei porque vieste, o que te passou pela cabeça para me surpreenderes assim, vinda do nada. Para abanares o meu mundo e deixares a marca dos teus pés em tudo o que era meu. Sinto que tenho de agradecer-te, mas é uma ironia amarga. E também não é preciso dizer adeus, agora que nunca mais nos voltaremos a ver.

Tudo isto porque tu nunca me deixaste. Simplesmente, estes anos de chuva intensa foram-te arrastando para longe. Nada escapa à erosão, e a areia é apenas ínfimas rochas indestrutíveis, solitárias e tristes e com vontade de se desfazer. Memória prega partidas, as minhas memórias estão cheias de arrependimentos. As rochas levadas pelo vento questionam-se qual é a razão de tudo, perguntam-se quando chegará a nova Idade do Gelo.

Os miúdos estão a perguntar se vai ficar tudo bem. Tenho demasiados telefonemas em lista de espera. A poeira da casa está em suspenso, iluminada do sol que entra pelas frinchas da persiana. A tua casa está à espera, está à espera que entres. Tudo é tudo, e vice-versa - as palavras começam a escassear. Em breve acabarão subitamente.

E eu sei que na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emergirá lentamente da selva esparsa, e eu sei que o dia estará quente, quente, e vice-versa. Este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo, etc., terá os olhos postos nos lugares vazios onde antes estavam os turistas. Ele vai deslizar por entre os esqueletos dos turistas que foi comendo ao longo destes anos todos. Ele vai perguntar-se: isto sou eu? Este ser de língua bífida, comprida, os olhos de réptil perverso? Eu sou este glutão? Este assassino? Sangue a escorrer das minhas mandíbulas? O dragão do Komodo vai ficar parado junto às carcaças pequeninas das crianças que devorou sem apelo nem agravo, vai considerá-las por algum tempo. Uma lágrima vai formar-se no canto do seu olho de réptil perverso e com a sua língua bífida ele vai lamber essa lágrima, o que imediatamente provocará uma irritação no olho de réptil perverso devido aos milhares de bactérias que colonizam a sua boca (e que normalmente provocam a morte por infecção às presas por ele mordidas, etc.). Este dragão do Komodo vai lamentar-se pela infantilidade das suas reacções. Ao longe vai ver os outros dragões do Komodo caçando os poucos turistas que ainda se arrastam pela praia: uma imensa arena ensanguentada, povoada por gemidos e braços esticados em pedidos de misericórdia.
Ilha de Rinca: terra sem rei nem roque. Lugar fodido para viver. Este dragão do Komodo vai sentir-se só.

Os miúdos estão a puxar as minhas mangas, vês? Organizaram esta festa e convidaram todos os amigos de toda a gente. Até os meus, até as pessoas que eu magoei e abandonei e violentei e desiludi. Durante a noite toda vamos beber daiquiris à volta da piscina. Mas faltas tu. E eu nem sequer lhes disse, eu nem sequer te disse ainda que tu já não estás viva, que tu nunca estiveste viva, que tu estás tão viva como a boneca insuflável Lola2000 com a qual partilho a cama, e que me beija apaixonadamente todas as noites antes de adormecer. 

terça-feira, julho 27, 2004

beleza

Como explicar isto? Como explicar este misto de atracção e repulsa que sinto por tudo o que é belo? Como explicar este equilíbrio que eu procuro em substituição da beleza, esta tranquilidade que sucede ao clímax, à tempestade, e cuja aspiração última é exactamente a ultrapassagem da necessidade de tempestades e de bonanças - numa espécie de fusão impossível com o que é Uno, belo e feio ao mesmo tempo?

Eu amo a tranquilidade e toda a minha vida é uma procura da ordem - a única beleza que está ao meu alcance. Isto porque em mim a contemplação estética é inseparável do terror: o que eu contemplo em algo que é belo não é um simples ordenamento feliz de um conjunto de características - é acima de tudo uma visão momentânea sobre um outro mundo. Ainda hoje sou gozado pelos meus amigos por um dia ter dito que uma certa rapariga tinha 'uma beleza assustadora'.
Este mundo do belo-em-si está irremediavelmente para além do existente e do concreto, para além do que me é dado e do que alguma vez poderei alcançar. Quando eu vejo algo belo eu tenho uma visão da beleza-em-si, do mundo do qual eu nunca farei parte. Por isso, a experiência estética é em última instância experiência de humilhação, é experiência de solidão extrema - é experiência de medo, não só devido à minha irredutível ausência, mas também devido a uma irredutível incapacidade.

Eu gostava de não pensar assim.

A beleza só se manifesta por revelação, por transcendência; ao mesmo tempo, as oportunidades de transcendência estão presentes nas coisas mais díspares, mais inesperadas. Por isso, é natural que me encontre por vezes siderado como uma criança diante das coisas mais simples, e é natural que passe horas em contemplação - coisa que não fazia há alguns anos.

O terror e o desconforto da experiência estética fazem com que procure alternativas. É para mim uma extrema violência ser confrontado, desprotegido, com um conjunto de imagens, portas para dentro desse mundo imensamente distante do meu. Por isso, é-me muito mais fácil mergulhar no submundo do que é feio e grotesco. Sinto-me muito mais à vontade. Mais do que isso, sinto que estou em casa, sinto-me no meu verdadeiro elemento.

No entanto, eu não sou este festim nu. (De facto, eu não sou nada do que tenho escrito, e ao mesmo tempo sou tudo). A minha incapacidade para lidar com a beleza não me impede de procurar a ordem, a tranquilidade - aqueles breves momentos em que tudo, tudo está no seu devido lugar, em que o belo e o feio se dissolvem e deixam de ter significado. Estes momentos são para mim o paraíso na terra. Constituem o 'as good as it gets' da minha vida. Sinto-me afortunado por ter tido bastantes desses momentos.

Por exemplo.

O autocarro em que viajávamos até La Guaira está avariado numa berma da auto-estrada.  Esperamos horas naquele autocarro, sem nada para fazer a não ser conversar. E o sol do fim de tarde torna tudo diferente, e os olhares e cumplicidades que se formam naquele autocarro estão para além do que posso explicar. Anoitece lentamente, vamos conversando, vamos fazendo companhia uns aos outros. Parece que havia uma rapariga espanhola que gostava de mim. Tudo é inocente, não há segundas intenções em nada. Eu estou em casa, tudo está em ordem.

Acordo no deserto indiano muito cedo pela manhã, e centenas de insectos voam silenciosamente por cima de mim, pontos fugidios no céu azulado, fresco. Apesar da enorme quantidade, nenhum dos insectos tenta poisar em mim, nenhum perturba o meu lento despertar. Parecem estrelas negras, e o céu está louco de tantas estrelas negras. Alguém na fogueira prepara o pequeno almoço e ao meu lado as mantas dos meus companheiros de viagem. Os camelos circulam livres, se fechar os olhos consigo visualizá-los pelos sons brandos que fazem. Quando me levanto, o meu tamanho é desmultiplicado em um milhão à medida que subo as dunas virgens e descubro toda aquela imensidão, o dia que se aproxima. Tudo está em ordem. Na minha cabeça, o Michael Stipe canta "I've been high".

Em Carupano, naquela noite, e Carupano era amor, deitado no chão a ver as estrelas do Sul e alguém ao meu lado a explicar-me aquelas estrelas todas, uma noite doce. Quando finalmente regresso à minha tenda naquela praia ela chama por mim e vejo a sua cara obscurecida por detrás do mosquiteiro. Aproximo-me e ficamos a falar por alguns segundos. Nessa altura as coisas ainda não se complicaram - ainda não estamos próximos o suficiente. Carupano era amor de manhã também, com a névoa no campo de palmeiras, com a simplicidade e o encanto insubstituível de algo que ainda não se concretizou, algo que não se chega a concretizar.

Entramos naquela cave em S. Bento e imediatamente os Smiths começam a tocar "This Charming Man", e eu estou com o João e a Raquel e o Tino e quero que eles saibam quem eu sou. E nessa noite Lisboa é nossa, e somos amigos, e não é preciso mais nada porque estamos juntos.

Ou aquele fim de tarde simples, sem solavancos, no Parque Eduardo VII e eu a despedir-me dela e ela a apanhar o autocarro para casa e eu a pensar onde é que já senti isto, eu a pensar isto sou eu antes de ter sido corrompido, eu a pensar julgava que estas coisas já não eram possíveis na minha vida.

Ou aquela frase final do Jack Kerouac, a frase mais bonita que alguém escreveu:

"So in America when the sun goes down and I sit on the old broken-down river pier watching the long, long skies over New Jersey and sense all that raw land that rolls in one unbelievable huge bulge over to the West Coast, and all that road going, all the people dreaming in the immensity of it, and in Iowa I know by now the children must be crying in the land where they let the children cry, and tonight the stars'll be out, and don't you know that God is Pooh Bear? the evening star must be drooping and shedding her sparkler dims on the prairie, which is just before the coming of complete night that blesses the earth, darkens all rivers, cups the peaks and folds the final shore in, and nobody, nobody knows what's going to happen to anybody else besides the forlorn rags of growing old, I think of Dean Moriarty, I even think of Old Dean Moriarty the father we never found, I think of Dean Moriarty."

segunda-feira, julho 26, 2004

I see dead people

Nas ruas desertas da Bica à noite, quando todos dormem e ainda ninguém se levantou, está um rapaz parado numa esquina a ouvir o silêncio e a água que escorre pelas ruas abaixo, e as suas roupas estão rasgadas em alguns sítios porque eram demasiado apertadas e ele mexeu-se muito rápido para fugir - e o seu eyeliner está incerto em alguns sítios e talvez desbotado pelo suor, pelas lágrimas, e nas ruas escorregadias da Bica à noite ele escuta com atenção, agarra-se às paredes, os seus caracóis manchados de cal - não vão os namorados voltar.

E naquelas ruas escuras que bordejam S. Bento, onde à noite ninguém se dá ao trabalho de ir a não ser para vomitar, um rapaz corre e olha por cima dos ombros, tropeçando, e tudo o que ouve é a sua respiração, o seu terror, e as suas calças de licra apertam de forma intensa o saco escrotal à medida que este rapaz perde as energias, perde a calma - e ele esconde-se junto a uns andaimes que impedem casas de cair e chora baixinho, e olha para todos os lados (não vão os namorados voltar), e pensa na sua mãe, e pergunta-se onde é que tudo correu mal, e na sua mala preservativos bâton e metade de um telemóvel, uma pistola de água.

E no Bairro Alto, também à noite, quando alguns adolescentes crescem e outros se embebedam e tantos tantos descobrem o amor e o que o amor custa, um rapaz rodeado de homens é empurrado de um lado para o outro, é abraçado e beijado e manuseado e ninguém se importa com o que lhe acontece, e depois este rapaz vai para apartamentos e sai desses apartamentos de manhã e o dinheiro continua a aparecer não se sabe de onde, e se apenas Lisboa soubesse isto tudo, e se apenas os amigos deste rapaz soubessem - e no Príncipe Real este rapaz gira, embriagado, sorridente, acompanhado das namoradas dos namorados, e ele é uma mascote e elas esbofeteiam-no nos pátios e todos se riem, e todos são o máximo, e todos têm sonhos que os fazem cair da cama, e nas malas preservativos bâtons destroços de telemóvel, confettis, pistolas de água, instruções para fazer bombas caseiras.

E as namoradas dos namorados são as mais cruéis de todas, elas dizem fode-o fode-o, e riem-se nuas, pedradas na cama, e os namorados excitados agarram no pénis e perguntam ao rapaz queres que te foda com isto? e ele diz sim fode-me, e põe-se de gatas na cama e fecha os olhos e espera e as namoradas gritam fode-o fode-o, e vêm-se antes de toda a gente, e puxam os cabelos do rapaz, dos namorados, e depois fumam, suadas, exaustas, loiras - e no dia seguinte vão trabalhar.

E nas casas de banho dos bares do Bairro Alto, da Bica, desses sítios todos, os namorados debatem nas paredes sobre este rapaz, e desenham pénis horríveis, grandes, que despejam esperma na boca de um rapaz com eyeliner, e os sacos escrotais que eles desenham são imensamente peludos, feios, e suor forma gotas nas pontas. Alguns namorados são brasileiros, outros não, alguns são actores, e cocaína é cheirada nessas casas de banho e há sempre cocaína naqueles apartamentos e o rapaz está pedrado também, no fim, a sua roupa interior manchada de sangue.

Os namorados: gente que só se vê à noite. Um ou outro mais bonito, um ou outro da televisão, das revistas. Eles bebem cocktails no Bairro Alto e depois excitados no chuveiro eles masturbam-se em frente ao rapaz e dizem-lhe olha só para essa pila meu olha-me só para essa pila, e os pénis dos namorados tocam o pénis do rapaz e todos gemem e tudo é fantástico e as namoradas tiram fotografias, riem-se. Elas também aparecem nas revistas, nas festas, nos concertos, na televisão. E nas caves dessas casas, ou num quarto fechado nos apartamentos, alguém está amarrado a uma cadeira há demasiado tempo, cego pela escuridão, os seus pés nus mastigados por ratazanas, e esse alguém agita-se, desperta do torpor sempre que alguém passa em frente à porta - mas a porta não é aberta por muito tempo.

Os namorados: uma trupe amigável, carnavalesca. Uma segunda identidade. Todos gostam uns dos outros - até certo ponto. O rapaz fica sempre no lugar do meio, nos bancos de trás dos carros, das carrinhas. Toca, é tocado. É levado para matas, pinhais, solares, para casas em Galamares, para o Cristo-Rei, para os cemitérios de autocarros. É passado de mão em mão. É tratado como pede, tratado como foi aprendendo a querer. Ninguém fica a perder. Até certo ponto.

Os namorados já mostraram mais do que uma manifestação de crueldade. E se Lisboa soubesse, se os amigos soubessem... mas não importa porque o rapaz já recuperou de ontem à noite, já encontrou o caminho para casa e a Bica e S. Bento são apenas os fumos de sonhos maus. Não importa porque ninguém se importa. Por muitas palavras supostamente amigas que este rapaz oiça, ele sabe que não há ninguém a não ser os namorados. E já veste outra vez as meias, as ligas, já rapa cuidadosamente o peito, a púbis. Este rapaz sabe que não é mais do que um corpo colonizado por nódoas negras, um pescoço mordido, um pénis trilhado. Este rapaz está contente porque até agora nunca o prenderam para ser comido por ratazanas em quartos escuros. Este rapaz já viu mundo, já esteve alto, já está apaixonado outra vez.

sábado, julho 24, 2004

Almoço de Sábado

Hoje o acordar foi diferente. Quer dizer, todos os dias o acordar é diferente e as minhas madrugadas têm normalmente sangue, visitantes, profecias, julgamentos. Porém, hoje foi fisicamente diferente: três segundos antes de acordar eu já não estava a dormir. Explico: eu hoje ouvi-me a ressonar. Agora não sei se foi uma descoordenação por parte do meu organismo, ou se foi o meu ressonar que me despertou. Também não sei se isto é normal, mas senti-me estranhamente privilegiado por ter assistido, sobre um limbo normalmente fugidio, ao desenrolar da minha inconsciência.

Eu estava a sonhar com a minha família, com a minha pobre família, sempre a correr de desgraça em desgraça. Uma família que só se junta, só se define pelas desgraças. Estava a sonhar com telemóveis que se ligavam a aparelhagens e transmitiam mensagens em festas de aniversário. Eu era o responsável por que tudo corresse bem. Quando acordei o sol de ontem tinha desaparecido, e as nuvens frias da Grã-Bretanha estavam de volta. Fiquei aliviado. Para além disso, a pressão sobre as minhas têmporas tinha-se dissipado ligeiramente. Fui tomar duche e, devido a algo que puseram no ralo para evitar o mau cheiro, agora a água não passa - tive de me apoiar nas bordas do poliban para que a água não transbordasse. Senti-me como um homem-aranha, como um ladrão.

Com a toalha enrolada à volta da cintura, em tronco nu, andando lentamente pelos corredores escuros do apartamento: apercebi-me que tudo estava estranhamente silencioso há pelo menos dois dias. Há pelo menos dois dias que não tenho uma conversa com uma pessoa de carne e osso. Estarão todos mortos? Ou terei eu morrido? Será que alguém ainda lê o meu blog?

O meu almoço: um tomate, metade de um pimento amarelo (guardei a outra metade no frigorífico), alface, queijo feta cortado aos cubos, massa (espirais tricolores a cozerem durante exactamente 11 minutos). Depois de escorrida, a massa é arrefecida com água fria, depois junta-se aos vegetais e ao queijo e é temperada com um fio de azeite e uma (ou duas) pitadas de orégãos.
Junto ao mar, pai e filho atiram pedras às gaivotas bébés que perto da zona de rebentação aprendem a nadar. Eu como com apetite q.b.: à minha frente a garrafa de azeite, just in case. A cozinha está silenciosa à excepção das ondas e das crianças que se agitam na rua, tentando destruir um gigantesco castelo insuflável. Penso se esta dieta de vegetais terá algum efeito em mim. Ficarei mais musculado? As vitaminas vão tornar os meus abdominais mais firmes e atraentes? Os pêlos nas minhas costas vão desaparecer? E as manchas no meu peito? E haverá algum efeito ao nível dos meus fluidos - na viscosidade do meu sangue, na composição das minhas fezes, no cheiro do meu esperma?

Como em silêncio. Penso em tornar-me vegetariano. Penso na minha imensa solidão de vegetariano num país latino, em que os pratos vegetarianos são basicamente os pratos normais de churrasqueira a que se retirou a carne. Vegetarianos: condenados a omeletes, arroz, anéis de cebola e uma azeitona. Penso se poderei partilhar os jantares de família, se o facto de me tornar vegetariano não será mais um argumento para os meus primos me chamarem de 'panasca'. Penso nisto tudo, e vou picando a minha salada com um garfo. Devia começar a comer com pauzinhos. Mais: devia andar sempre com os meus pauzinhos, e retirá-los ritualmente de uma bolsa de pano no meio do restaurante, quando estou com os meus amigos (a bolsa de pano teria motivos incas). Devia dar graças antes de comer. Devia descalçar-me e sentar-me na cadeira como um monge budista em meditação. Devia andar sempre de cabeça rapada. Devia falar por aforismos. Devia castrar-me quimicamente.

Depois penso num post chamado 'Almoço de Sábado'. A minha salada está quase a acabar e vou comer uma maçã verde, fresca. Vou descascá-la habilmente com uma faca. Imagino-me a escrever um post chamado 'Almoço de Sábado'. De faca na mão, imagino-me nesta cadeira, nesta posição, a escrever exactamente... estas... palavras. Depois, de faca na mão, imagino-me de faca na mão a descascar a maçã e a levá-la à boca. Penso se alguém iria gostar de mim se me visse assim. Junto ao mar, o pai (ou o filho) finalmente acertou com uma pedra numa das gaivotas bébés. Enquanto os dois festejam dando saltos, ela afoga-se, e à sua volta a água torna-se rosa, depois vermelha, depois quase negra. Pai e filho estão finalmente juntos, e por momentos o divórcio é esquecido. Eu penso numa variação de uma frase famosa do Morrissey: 'Por favor alguém me impeça. De pensar. A todo o tempo. Tão profundamente. De uma forma tão pessimista. Sobre tudo.' 

sexta-feira, julho 23, 2004

Em Londres com o Miguel

'Não me importo de mentir para dizer algo que é verdade' - e foi assim que nos despedimos. Que não me importava de mentir, que o mais importante era a verdade que surgia no final, a verdade que emergia - a verdade dos sentimentos. O que somos, parecia-me, não se resume ao que fazemos, aos sinais exteriores e aos efeitos dos nossos actos. O que somos é um mistério, um mistério dentro de um mistério que só um mistério pode, talvez, revelar.

Eu andava a brincar com as pessoas, andava a brincar com o Miguel também, andava a manipular-me, a fazer malabarismos comigo. Mas precisava disso, fazia-me sentir que tinha alguma espécie de controlo, alguma palavra a dizer, do fundo da minha confusão e da minha distância. Onde eu estava, onde eu vivia, o Verão era indeciso e a chuva nunca parava - eu estava na verdade em Avalon, estava a viver um sonho dentro de um sonho. E nada me era revelado.

Eu estava apenas a ser sincero: a contradição do que dizia era o labirinto em que eu estava, o quebra-cabeças que me tinha tornado.

Oxford Street: dentro de uma HMV Miguel percorre as prateleiras de LP's, enquanto eu o observo. Miguel pára, faz os dedos percorrer uma fila de discos, com os dedos separa os discos e retira um. Olha em volta da sala, em busca de mim, e eu não faço qualquer esforço para que ele me encontre - apenas continuo no meu canto na secção de posters, a olhar para ele.
Isto é Miguel em Londres, isto sou eu com o Miguel em Londres e ele está a mostrar-me músicas de que gosta, títulos de canções, capas, fotos - ele está a desfilar estas coisas em frente dos meus olhos e eu penso no fedor de todas as minhas mentiras.

Mas não é apenas no Miguel que eu penso: eu penso na maré de merda que flui de mim, nas ondas e ondas de matéria impura com que infectei todos à minha volta. Penso nas pessoas que abandonei, as pessoas que enganei - penso nestes demónios, e estes corpos e mentes torturados lançam um grito intraduzível, um lamento de raiva. Eu olho para aquilo e sinto medo, apesar de estar longe.

Kensington: a tarde em Londres está quente e eu deito-me num relvado à sombra. O Morrissey poderia passar à minha frente e eu não me mexeria. O Miguel lê um dos seus livros nihilistas e eu tento adormecer: ando à dois dias a comer apenas bananas. Penso se isto que tenho cá dentro se pode de algum modo assemelhar a amor, um amor oprimido, preso por correntes, um desejo assassino de amor. Resolvo que o amor nunca pensaria estas coisas, o amor não teria estas dúvidas, e à medida que a minha frustração se avoluma eu penso se será a minha sina acabar por macular tudo com este ressentimento. Como se a vida me devesse qualquer coisa.

Por isso, para não mentir mais, eu fico calado em Kensington. Mas não será o silêncio uma espécie de mentira? Quando a alma está desejosa de produzir som, de expulsar, de transmitir em queixumes ruidosos alguma coisa que correu horrivelmente mal. Alguma coisa que não se sabe o que é.

Kensington: penso em fetos calcificados, na Princesa Diana, em fetos calcificados que dançam, com um chapéu alto. Penso em lojas, quilómetros e quilómetros de uma única loja: figurinhas pequenas e adoráveis no fim de um dos corredores, brinquedos, prendas que o meu irmão me daria. O dia em que conseguir chorar isto tudo vai ser o dia em que vou enfim perceber - vou andar para trás e para trás e vou-me deparar, no fim do túnel, com uma figura que personifica os meus fantasmas todos. E depois nós vamos lutar, e eu vou ganhar ou vou perder.

Miguel: demasiado amor, demasiado egoísmo. Há algo que me impele a abraçá-lo.

Paddington, à espera de um comboio. Gostava de servir para alguma coisa na vida do Miguel. Compreendo que sempre tentei moldar as pessoas à minha imagem. Tentei mudá-las para as integrar na minha perspectiva de ordem. A maior violência. Porque o Miguel vai ter de sangrar, mas eu espero que não sangre demasiado. Neste momento, não há nada que possa fazer pelo Miguel, e a minha impotência só me entristece porque desde o início pensei que poderia fazer alguma diferença. Espero que o Miguel possa voltar a sentir-se feliz - ainda que haja fantasmas e pensamentos que regressem sempre.

Comboio, Seven Sisters, para longe daqui. Miguel ficou em Paddington, eu vou fazer fogueiras para Deus sabe onde. No meu saco, cachos de bananas apodrecem. O meu sono no comboio é interrompido pelas coisas e barulhos que me pisam as têmporas. Eu não vou para lado nenhum em especial. Mas não há nenhuma razão para que isso seja pior do que um destino definido.

O que nos vai acontecer, Miguel? O que é que a vida nos tem reservado? Consegues perceber porque é que nunca serei verdadeiro? 1) porque o que está em mim é demasiado feio; 2) porque quero que o que está em mim se torne, um dia, bonito.

Uma coisa que ficou por dizer: 'Eu compreendo o que sentes. Eu estou aterrorizado. Mas eu tenho de tentar. E espero que tu também o faças'.

quarta-feira, julho 21, 2004

Querido amigo,

 
Boa viagem de volta a Delhi. Vai correr tudo bem.

Um abraço,
j.

Padanyaasa (coda)

 
Meu querido a flor
(que me dói de ser humana)
está orgulhosa de morrer
debaixo dos pés dos dançarinos.

 
(para a Ana T.)

Padanyaasa

Mais de dois anos passaram desde que regressámos da Índia e já tantas pessoas morreram nos comboios a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, tantas pessoas mortas que não chegaram a entrar nos comboios e caíram em charcos de lama estagnada nos bairros junto aos caminhos de ferro. Os porcos, as crianças vão remexer aqueles túmulos rasos e vão encontrar os ossos de todas essas pessoas que morreram, vão desenterrá-los e brincar com eles, vão fazer como o macaco do 2001 e bater os ossos uns contra os outros, vão utilizá-los como armas, vão ferir e afugentar as outras crianças.
E mesmo assim as imensas prisões vão constituir armadilhas em movimento a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, e as pessoas vão entrar nelas e olhar com olhos tristes pelas grades das janelas, vão desenrolar as folhas de jornal vão comer.
 
É noite cerrada em Delhi e o meu amigo chama o meu nome. Quando acordo ele está sentado na cama, aterrorizado, à beira das lágrimas. E depois eu estou no seu sonho, e do nosso quarto sem janelas nós não vemos o imenso grito, o sofrimento uníssono das crianças carregadas por crianças, das crianças carregadas por cães, das crianças a remexer no esgoto e das crianças a serem mordidas por ratos. Eu estou no sonho do meu amigo, meio a dormir, e estou numa enorme colina sobre Lisboa e depois as explosões, depois o apocalipse, e o apocalipse a aproximar-se.
Os meus sonhos eram bastante mais simples: eu era um jogador do Benfica, as pessoas gostavam de mim, havia confusas querelas por minha causa, eu era tido em conta.

E nas manhãs tudo continuava estranho, um sonho dentro do sonho, eu dentro do meu amigo e aquela cidade imensa de milhas e milhas - e os milhões e milhões de pessoas, todas iguais, à nossa volta. E apesar disso cada uma daquelas pessoas era uma história, um drama, um grito diferente - e eu era também um grito. Tinha a sensação de que me queriam arrancar a pele. No velho bairro muçulmano nós entrávamos para nos perder e percorríamos um longo caminho no meio da multidão que se encaminhava para a gigantesca mesquita ao pôr do sol – deixávamos de ser nós, passávamos a fazer parte daquele sofrimento todo, aquela dor descalça, atravessada de moscas.
Depois diziam-nos para sair. Era suficiente, diziam eles. Iam rezar, diziam eles. Nós não devíamos lá estar enquanto eles rezavam. Nós íamos procurar sítios para comer, sítios para telefonar para casa.

E por isso no velho bairro muçulmano, mesmo junto ao imponente forte de Delhi, as labirínticas ruelas cavalgadas por ratos e as caras adoráveis das crianças a tornarem-se lentamente em máscaras de olhos brilhantes e dentes aguçados, e travestis tocavam-me e eu deixava e as lágrimas daquela gente deixavam marcas na poeira das suas faces e eu recusava-me a olhar para elas. Facas luziam na escuridão, músicas contraditórias em lugares que eu não identificava, sorrisos e farsas e tantos corações cheios de fatalidade, tantas pessoas que dançavam. Para além da alegria e da tristeza, para além do bem e do mal. Nos templos Jain, nos templos Sikh, éramos recebidos de braços abertos e comíamos a comida dos deuses. Ficávamos sentados nos tapetes dos templos a ouvir os instrumentos dos deuses e eu fechava os olhos e esperava um alívio, alguém que viesse ocupar o meu corpo por algum tempo. Uma substituição, para poder descansar.
E telefonava à minha mãe de ruelas sem fim nem destino, e os vampiros da noite de Delhi aproximavam-se de mim. O meu amigo, ao longe, falava tranquilamente com crianças, no meio dos ratos mortos. As ruas eram tão apertadas que eu não via o céu. Dizia à minha mãe para não se preocupar.

E assim, cada vez que penso naqueles comboios a caminho de Bangalore, a caminho de Varanasi, eu penso nas escadarias que vão dar aos rios e nos banhos purificadores, penso em pessoas calcinadas impedidas de sair de carruagens, algures nos desertos do Gujarat. Penso nas linhas ordenadas de camelos, ao longe, debaixo do sol que ardia, e penso na minha cara tapada por um lenço, os meus olhos vermelhos da poeira do deserto.  Penso nas aldeias perdidas onde nunca nenhum comboio parou, e do modo como abrandávamos e de como as crianças vinham a correr acompanhando as carruagens, o modo como as crianças estendiam as mãos para me tocar. Penso em mim a pensar nestas histórias todas que guardo em mim, estas histórias que mais ninguém sabe, e algum dia terei tempo de as contar? Penso em mim sentado na porta do comboio e nas lágrimas de uma menina a caírem nos meus joelhos, e ela encostava a cabeça no meu ombro e rezava, falava, suplicava, e aquelas palavras eram as palavras de tanta gente e mesmo assim eu não entendia nada.

terça-feira, julho 20, 2004

Mario Terán

No dia nove de Outubro Mario Terán vai emergir de uma cubata junto à pista de aterragem de Vallegrande. Tudo vai estar queimado, amarelo, quente, nada em Vallegrande vai parecer hospitaleiro. Mario Terán vai emergir da cubata e vai estar bêbado porque é o seu aniversário e ninguém se lembrou - porque ninguém soube.
 
Mario Terán terá nessa altura sabido dos acontecimentos da Quebrada del Yuro: o bando de insurgentes esfaimados, acossados, cercados por todo o lado, forçados a correr de rocha em rocha, naquele leito ressequido, até à rocha final: a ponta da espingarda de um soldado. Mario Terán não terá estado nesse dia na Quebrada del Yuro, mas ao emergir da cubata ele vai tentar imaginar a cara dos prisioneiros - o preciso momento em que terão pensado que aquilo era o fim da linha.
 
Mario Terán vai arrastar a espingarda e sentir-se mal no seu uniforme, e vai estar bêbado debaixo daquele sol sem misericórdia e vai encaminhar-se para a escola abandonada de La Higuera, junto às ruínas da pista de aterragem de Vallegrande. Mario Terán vai pensar na sua terra natal, pensar basicamente na ausência de mulheres na sua vida, no triste que é um aniversário embriagado ali naquela terra esquecida de todos.
 
O líder dos prisioneiros terá dito ao capitão Prado Salmón: 'No se preocupe, capitán, no se preocupe. Esto es el final. Todo esta terminado', e por isso Mario Terán vai deslocar-se com vagar até à sala de aula abandonada onde o líder dos prisioneiros está, ainda vivo, amontoado junto aos cadáveres dos seus companheiros.
 
E na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emergirá lentamente da selva esparsa, e o dia estará quente, quente. Este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo que pode detectar presas feridas a milhas de distância, terá, no dia nove de Outubro, os seus olhos postos num pequeno turista alemão com óculos.
 
Mario Terán vai percorrer a terra batida, calcinada, até à sala de aula. Mario Terán terá ordens. A luminosidade em La Higuera vai ser tão intensa que ao entrar naquele pequeno edifício destroçado Mario Terán não conseguirá distinguir nada das sombras. A silhueta de Mario Terán vai aparecer à entrada e um pequeno movimento num dos cantos da sala vai chamar a atenção de Mario Terán.
 
Mario Terán vai sentir o cheiro fétido dos cadáveres apodrecidos debaixo do calor de La Higuera. Os olhos de Mario Terán vão chorar, mas sem qualquer ponta de sentimento. Nesse momento os pensamentos de Mario Terán vão estar no preço das suas botas, na ausência de mulheres na sua vida, numa canção que a mãe lhe cantava quando era pequeno. Mario Terán vai ver os olhos brilhantes do líder dos prisioneiros, os olhos tresloucados, alterados pelo medo, pelo desejo de glória. O líder dos prisioneiros vai falar: 'Sé que has venido a matarme. Dispara, cobarde, sólo vas a matar un hombre'. O chefe dos prisioneiros vai rosnar estas palavras e Mario Terán não vai pensar em nada. Mario Terán vai olhar apenas para os olhos de cão encurralado do líder dos prisioneiros. Mario Terán vai disparar uma, duas, três, quatro vezes.
 
Isto é o que Mario Terán vai ver no momento em que dispara: ele é pequeno outra vez e corre com o seu irmão mais velho pelos campos devassados de calor, perseguindo cobras. Ele é pequeno e a sua mãe espera pelos dois numa pequena casa fora de tudo, e ele e o irmão trazem duas cobras mortas e a mãe ri-se, fica ligeiramente chateada. O pai vai chegar a casa e a pele das cobras vai-lhe ser oferecida. Marito vai adormecer sem dificuldade, e vai sonhar que um dia há uma cobra que ele não pode matar.
Isto é o que Mario Terán vai ver no momento em que dispara: é 2004 e ele emerge de uma caravana em Miami, onde vive desde aquele nove de Outubro. É 2004 e tem uma filha com o síndroma de Down. As raparigas de Miami andam nas ruas em biquini, acelerando em patins. Mario Terán vai olhar para a esposa deformada ao seu lado na cama, vai ter pena da sua filha, vai perguntar-se pelo filho mais velho que nunca mais voltou para casa.
 
Isto é o que acontece ao corpo do líder dos prisioneiros no momento em que Mario Terán dispara: a primeira bala perfura-lhe o baixo ventre, não causando imediatamente a morte mas provocando uma dor aguda, penetrante, na zona do apêndice. A segunda bala é fatal: entra pelo tórax e fura o pulmão direito - o organismo entra em colapso e o sangue dos pulmões inunda a caixa toráxica. O líder dos prisioneiros já não viverá para sentir a terceira e quarta balas, que entram respectivamente junto à jugular e em cheio no diafragma.
Isto é o que o líder dos prisioneiros vai pensar no momento em que Mario Terán dispara: então é isto. Então a morte é isto.
 
Mario Terán vai lembrar-se outra vez que está bêbado. Vai olhar sem pena para o corpo de Ernesto "Che" Guevara, um corpo igual aos cadáveres dos companheiros que ao seu lado apodrecem. Mario Terán vai achar que não é justo que Guevara o tenha chamado de cobarde.
 
Mario Terán vai emergir da sala de aula onde o cheiro dos corpos atrai legiões de insectos. Mario Terán vai olhar ao longe as nuvens de abutres que se aproximam: milhares e milhares de abutres, abutres sem fim que escurecem o céu. Mario Terán vai encolher os ombros e virar as costas aos abutres. Afinal: haverá ainda tanto por fazer! Cortar as mãos ao cadáver de Guevara, enviar as mãos para a Argentina, entregar o cadáver de Guevara às freiras, lavá-lo, pentear os cabelos e aquela barba que tantas mulheres atraiu. Enfim, expôr o corpo de Guevara aos fotógrafos, imprimir umas T-shirts, torná-lo no novo Jesus Cristo.
 
Mario Terán vai achar que não é justo que Guevara o tenha chamado de cobarde. Mas ele vai encolher os ombros, poisar a espingarda no chão, coçar o ânus, levar os dedos ao nariz, cheirar levemente.
 

segunda-feira, julho 19, 2004

Minha família (coda)

OEDIPUS:   Stop! Who were they? Who were my parents? Tell me!
 
TEIRESIAS:   This day will show your birth and your destruction. 
 
 
(Sófocles, Oedipus Rex, vv.437-438)

Minha família

Eu sento-me à janela com os pés à chuva, eu sento-me na poltrona em frente à televisão e vejo aqueles programas velhos até tão tarde. Eu sento-me num sítio onde o sol não bate - tal como o meu pai quando ele estava em casa.
Levámos mais golpes do que podíamos suportar, e por isso é de longe que vos escrevo. Passo grande parte do dia a ver a chuva e penso em vocês, na rapidez disto tudo, no desconforto. Algumas pessoas fizeram mais do que eu, alguns filhos foram mais amigos, mais saudáveis, estiveram mais perto. Algumas pessoas levaram menos golpes do que nós mas nestes dias a chuva lava os meus pés, os sítios por onde andei - e por momentos tudo se desculpa.
 
Mãe: eu não compreendo esse amor. Lembro-me de desejar, na minha fúria, que retirasses esse amor ou que simplesmente mo fizesses compreender. Desejava também que gostasses mais de ti do que de mim, porque o teu amor me sufocava e me deixava sem desculpas para falhar. Eu queria poder culpar alguém. O teu amor deixava-me sozinho.
E era difícil conciliar esse amor imenso com tudo aquilo que eu via, com tudo aquilo que tinhas de fazer. E as pessoas batem tanto umas nas outras e eu vi tantas coisas que estes olhos se tornaram mais meus do que tudo o resto, e tenho pesadelos em que fico cego, em que me esqueço do que vi, em que tenho de aprender tudo outra vez. E é injusto dizer que aprendi tudo sozinho (tu mostraste-me tantas coisas, Mãe!), mas às vezes parece que foi mesmo assim.
 
E o que mais quero dizer é que lamento não poder amar-vos dessa maneira. Lamento nunca ter dito nada que vos trouxesse alegria. Mas eu tenho saudades de ser pequeno e de vos surpreender, saudades de escutar as vossas palavras como se fosse a primeira vez. Sinto a falta de correr para acompanhar os vossos passos seguros, saudades de estender a minha mão para agarrar na vossa. Saudades de jantar com o pijama vestido nos domingos cinzentos - e as minhas pernas baloiçavam, nem sequer chegavam ao chão.

Isso foi, claro, antes destas coisas todas que correram terrivelmente mal. 
 
Eu venho de uma família onde não se fala. Venho de uma terra queimada, uma terra má. Nesta terra fazem-te crescer para fazeres as coisas que o teu pai fez. Nesta terra abandonam-te sem escolhas, e se hesitas nunca mais serás perdoado. (Mas, claro, isto não explica nada, e as coisas más nunca serão explicadas.) Eu vim de uma família cheia de amor, como todas as outras. E na minha família, como em muitas outras, o que é mais importante nunca é dito. Porque nunca escolhemos a nossa família, e o sangue é o factor de união mais aleatório que existe.
 
E eu não sei se é o animal em mim que gosta de vocês - o animal agradecido, o animal inseguro, o animal que cospe na mão que o alimenta. Não sei se é o menino, o menino para o qual era inconcebível que vocês alguma vez falhassem. Ou chorassem. Ou se portassem mal como as outras pessoas. Também não sei se é o homem - o homem que quer e não quer voltar, o homem sem espaço, o homem cuja vida lhe aparece subitamente à frente, o homem que não se reconhece.
Eu não percebo nada. Eu não sei como é que uma pessoa escolhe o que é melhor para a sua vida. Esta coisa que sinto é um mistério, mas vocês nem isso chegarão a saber. 
 
Por isso, Pai, não chores - eu gosto de ti. Tu esforçaste-te mais do que ninguém para seres o que eu esperava. Eu vejo um campo verde sem fim e uma bola de futebol salta entre nós os dois - nós damos grandes chutos, agora que as tuas pernas estão boas outra vez. A chuva vai lavar tudo, Pai, e eu queria ajoelhar-me diante de ti e chorar estas coisas todas cá para fora.

sábado, julho 17, 2004

Madrugada (3/3)

Quando acordo está uma mulher velha, nua, de cabelos muito longos, num dos cantos do meu quarto. Ela balança ininterruptamente o seu corpo deformado como se estivesse a embalar uma criança que não lhe pertence - uma criança que cresceu e se foi embora.
Passam-se vários minutos de silêncio, durante os quais eu evito olhar para os buracos sangrentos na sua cara, os sítios onde um dia foram os seus olhos.
Depois ela fala.
'O que essa rapariga te fez...', diz ela, '...não é assim tão mau'.
E eu estou a agarrar a minha cabeça e a chorar baixinho, porque a voz dela é demasiado horrível:
'Sabes? Há muita coisa a passar-se enquanto dormes'.
 

sexta-feira, julho 16, 2004

Madrugada (2/3)

Quando acordo está uma gaivota parada no centro do quarto. Depois de eu abrir os olhos ela começa a mover-se lentamente. Penso: velociraptores.
Sento-me na cama sem dizer nada e espero.
"Demoraste. Demoraste", diz ela. "Tens demorado".
E então ela explode, e eu sou projectado para trás, e tudo no meu quarto é o seu sangue.

 

quinta-feira, julho 15, 2004

Madrugada (1/3)

Quando acordo está uma mosca do tamanho de um homem, em pé, junto a um canto do meu quarto.
As suas asas batem levemente, por momentos, depois de eu abrir os olhos.
"Estava à espera que acordasses", diz ela.
E com um silvo lança-se sobre mim.

Fotografias de mim

Na rua em frente de mim dezenas de crianças tentam chamar a atenção dos pais que olham para o mar, para o mar que cresce, e as crianças puxam as mangas dos pais e só querem ser felizes, a sua vida está mesmo agora a começar, e a banda filarmónica começa a tocar de novo 'A Whiter Shade of Pale' mas desta vez alguém acompanha a música assobiando muito perto de mim - e depressa o assobio deixa de acompanhar e muda gradualmente para algo que se parece o 'Imagine' e eu estou a olhar para raparigas demasiado bêbadas, demasiado novas, estou a pensar que aquela história da separação entre o Ben Affleck e a Jennifer Lopez nunca chegou a ser bem explicada. Esta fotografia é tirada de fora, junto à zona de rebentação na praia negra, coberta de pedras, e a lente faz zoom até à minha cara e eu estou a morder levemente a língua. Barulho de crianças lentamente desliza para choro desapontado de crianças. Crianças sentem pontadas de solidão e eu mordo a minha língua, fazendo-a deslizar entre as linhas dos dentes, e atrás de mim arroz branco cozinha-se sozinho, e eu vou comê-lo numa malga com pauzinhos, sentado no chão do meu quarto. Estou em pé, encostado junto à enorme janela que dá para o mar. Estou a tomar uma decisão.

'Colony' de Joy Division nos meus auscultadores e eu estou sentado no meio de um relvado, e o sol cai em cima de mim e eu fecho os olhos e viro a minha cara para o sol, e do meu cotovelo escorre sangue e eu não gosto lá muito de Joy Division. Não penso em nada de especial, penso no jogo de futebol que acabei de jogar, penso no cotovelo que sangra, penso em deixar o sol entrar dentro de mim, esse tipo de coisas. À minha frente Panticelyn, o sítio onde te dão pontapés na porta todas as noites se não falares galês. Alguém com uma pressão de ar passa e eu dou por mim a pensar em esquilos, depois em ratazanas do tamanho de vacas deslizando lentamente em relvados como este em que estou sentado. O fotógrafo, indeciso sobre o plano, vai dando círculos em redor de mim mas eu não o vejo porque tenho a cabeça inclinada para trás e o sol entra pelos meus poros e no final a fotografia é tirada de longe, apanhando uma parte da fachada de Panticelyn e alguém com uma pressão de ar atrás de uma árvore a fazer de conta que vai disparar sobre mim.

No cemitério de crianças eu sento-me num banco num dia cinzento e como batatas fritas de um saco de papel, e já estou farto de ler inscrições em tumbas e penso nos Smiths. As gaivotas decidiram subitamente que algo está errado e estão a voar todas em direcção a um sítio qualquer, alguém passeia um cão, alguém procura algo no cemitério, e algumas tumbas foram danificadas na construção de um parque de estacionamento da paróquia e eu estou a pensar que isso não está certo. De onde eu estou vejo o memorial aos mortos da Grande Guerra, depois um galgo triste a arrastar a coleira, depois a namorada de um amigo que passeia junto ao mar talvez farta de viver com ele, e passa-me pela cabeça que o Brad Pitt deve ser uma boa pessoa porque gosta de Nick Drake. Esta foto é simples. O fotógrafo diz-me em surdina 'just act cool' e apanha-me num plano frontal sentado num banco cercado de tumbas, e eu estou a lutar com o saco de batatas fritas, talvez esforçando-me demasiado enquanto um fio de óleo escorre lentamente de um dos cantos da minha boca.

Depois de uma caminhada de meia hora pelas rochas cobertas de algas que a maré baixa revelou, eu estou parado a ver uma pequena colónia de gaivotas, os meus pés enterrados na areia, o mar à minha frente pulsando sobre as rochas em pequenas ondas que são como afagos. Cercado de falésias e pedras eu oiço Red House Painters, ou então oiço Sun Kil Moon, ou talvez seja Bruce Springsteen ou mesmo Sigur Rós. Algumas gaivotas foram destacadas para me vigiar e proteger a colónia, elas espreitam-me do topo das ravinas nesta praia pequena, escondida, secreta, e há grutas por todo o lado e por momentos esta praia é minha e eu sou desta praia. Penso que se partir a perna por aqui morro, depois um casal de pescadores passa, verificando com pequenas redes as poças que a maré baixa deixou. Estão em busca daquelas coisas que os pescadores buscam. Para esta cena o fotógrafo opta por um grande plano da minha cara: ele aproxima-se e eu estou a sentir o espírito desta praia a entrar em mim, talvez os fantasmas que aqui se afogaram, e eu estou a sorrir porque estou feliz. Para a posteridade fica exactamente este meu sorriso, e os meus olhos fechados, e as paredes de rocha à minha volta, tudo cinzento, tudo pardo. E a fotografia apanha ainda uma gaivota que se precipita para talvez me arrancar o nariz, mas no último momento ela reconsidera e voa para longe e a impressão que dá ao observador desta foto é que a gaivota se está a debruçar sobre mim para me beijar a face.

Sentado no meu quarto e acabei de escrever um post sobre os meus tempos do basquetebol no Fundão. Está escuro e este post deixou-me com saudades de todos aqueles amigos que eu abandonei - estou sentado em frente à janela abraçando os meus joelhos, penso neles e no terror que me levou a fugir, penso que 'Jesus to a Child' de George Michael é uma música lindíssima. E uma bola quente, peluda, negra começa a crescer no meu peito e eu não sei dizer se é tristeza ou alegria porque ao ouvir aquela música tão bonita eu estou a sorrir e a sentir saudades. Olho para a minha rua vazia à noite, sinto-me longe. Esta é uma sequência de fotografias e a equipa necessitou de alugar um helicóptero para a efectuar, ele começa a pairar junto à minha janela e vai-se afastando, eu sentado sem me mexer e a casa a ficar mais e mais pequena, o telhado e as gaivotas a voar em volta ficam em algumas das fotografias e é tudo muito intenso e o George Michael encaminha a música para o fim.

E na ilha de Rinca, na Indonésia, a cabeça de um dragão do Komodo emerge lentamente da selva esparsa, e o dia está quente, quente, e os dragões do Komodo chegam a ter um tamanho de três metros e correm com a velocidade de um cão (embora em pequenas distâncias). Os dentes deste dragão assemelham-se aos dos tubarões, e ele tem tantas bactérias na boca que, apesar de a sua saliva não ser venenosa, uma mordedura pode tornar-se fatal. As suas garras são, igualmente, temíveis, e este dragão, cuja língua é um poderoso órgão olfactivo que pode detectar presas feridas a milhas de distância, tem os seus olhos postos num pequeno turista alemão com óculos.

Outra fotografia: mais um fim de dia neste verão cinzento e as minhas roupas estão amontoadas descuidadamente sobre as pedras negras da praia. Duas ou três gaivotas voam à minha volta, protegendo as crias que nadam de forma patusca a alguns metros de mim. A praia é só minha, minha, e eu flutuo apenas, os braços abertos, e começa a chover e quando eu me deixo deslizar para debaixo de água vejo as patitas das gaivotas-bébé a dar e dar, vejo as gotas de chuva a bater com alguma força na superfície. Não me perguntem como mas estou a ouvir 'Gentle Moon', da nova banda de Mark Kozelek. Quando volto à superfície a chuva é mais intensa e eu estou nu, e água com sal escorre-me pela cara e eu estou nu, e não me perguntem como mas desta vez sou eu que tenho a máquina fotográfica nas mãos. Gaivotas voando à minha volta parecem compreender o que está prestes a acontecer e afastam-se, e quando eu olho para a margem para além da cortina de chuva vejo algo que nunca vi, vejo algo estranhamente familiar. Uma presença cujos contornos são indefinidos, e essa presença está junto às roupas que deixei na margem. Suspiro, bebo gotas de água com sal: um anjo está junto à água em que estou.

terça-feira, julho 13, 2004

Diários do Basquetebol

Estou na Covilhã. Catiqui está a tentar convencer-me, a mim e ao JM, que a rapariga na mesa lá ao fundo é uma prostituta. Miguel, a estrela do CDC (Clube Desportivo da Covilhã) fornece-nos um conjunto de provas: Catiqui inclusive já despejou um balde de água em cima dela, quando ela satisfazia um cliente debaixo da sua janela à noite. Eu estou a pensar que a Covilhã deve ser mesmo muito desenvolvida, para ter pessoas pretas como o Catiqui.

Estou na Guarda. JM recebe a quinta falta e é expulso. Eu estou sentado no banco a assistir àquilo. JM resmunga com o árbitro e chuta uma bola e sai para o balneário a chorar (os cabelos loiros, a cara de menino, eu adorava-o). Nesse dia jogamos tão mal que eu, com nove pontos, me torno o melhor marcador da equipa. A Associação Desportiva da Guarda dá-nos lanche mas eu nessa altura não gosto de sandes de fiambre.

Estou em Castelo Branco. Perdemos escandalosamente um jogo contra uma equipa manifestamente inferior a nós. Não conseguíamos ver bem as linhas porque estavam pintadas numa tinta clara, e por isso estávamos sempre a sair de campo com a bola controlada. No balneário ao lado a equipa da casa festeja. Daniel salta e parte um dos vidros que separam os dois balneários. Os ruídos dos festejos param subitamente.

Estou no Fundão. Recebo a bola de Maia (aka "Palanca Negra", aka "Pérola do Zêzere") e marco um dos pontos da vitória contra a Covilhã. O pavilhão salta em uníssono e festeja o meu ponto - eu não sabia que estas coisas podiam acontecer na vida real. Durante essa semana, o treinador ("Furra") tinha iniciado um dos treinos com um minuto de silêncio. Não conseguimos controlar o riso. Depois viémos a saber que esse minuto de silêncio se devia à morte do irmão de Dionísio ("Ferrari"), o nosso poste pesado, bruto e concretizador, um cigano com cabelos compridos, um pouco como o Joe o Índio dos desenhos animados do Tom Sawyer.

Estou num parque de estacionamento de um hipermercado à entrada da Covilhã. Joga-se um torneio de streetball. Lesiono-me no primeiro minuto e tenho de jogar o resto do torneio ao pé-coxinho - ainda assim, chegamos às meias-finais. A nossa equipa chama-se "Los Esporritos", depois adulterada para "Sportitos" pelo organizador da prova. Durante essa tarde apanho um escaldão, fico desidratado, marco um ou dois pontos de belo efeito, levo um bloqueio violentíssimo do mítico "Macaco" (jogador do Tortosendo), chateio-me com JM devido a pensos rápidos, ganho uma T-shirt.

Estou na Covilhã outra vez. Sou a arma secreta de Repolho, o seleccionador distrital. Jogar na selecção é interessante porque tens de passar a bola aos mesmos gajos que tentas esmagar no resto do ano. Mais interessante ainda, tens de os abraçar quando marcas pontos, e de os ver nus quando estás a tomar banho. Dão-me o número 10 porque Diogo ("Monguito") ficou com o meu preferido 8. Ainda assim vê-se que Repolho percebe de basquetebol. Decide apostar em mim para marcar o endiabrado base de Santarém. Apenas aguento dez minutos antes de cair de exaustão e pedir susbtituição, mas durante esse tempo o filho da mãe não marca um ponto.

Estou na Guarda outra vez. Flores ("Flowers"), o treinador interino, esquece-se que eu estou no banco. Quando lhe vou perguntar se vou jogar ou não diz-me "Ai estás aqui?". Jogo cerca de quarenta segundos. A estrela do desafio é Jorge ("Vitesse"), um pequeno grande jogador que soube remar contra a maré. A viagem de volta ao Fundão é triste. Se levantarmos os tapetes da carrinha podemos ver o asfalto. Se não segurarmos a carrinha com uns quantos paralelos depois de a estacionar, nada nos garante que ela lá continue quando voltarmos.

Estou no Fundão outra vez. Miranda ("Pauliteiro") é um treinador que não acredita em mim e passo a época quase toda no banco. Pela segunda vez na história desta 'golden generation' do basket fundanense, estamos prestes a ganhar à Covilhã. Ricardo ("Galinha") tenta um triplo, falha, e Miranda profere o maior e mais intenso chorrilho de asneiras que ouvi em toda a minha vida. As raparigas do basket feminino estão todas na bancada a ver-nos, provavelmente a escolher namorados. Eu estou apenas no banco. Nos balneários tenho de lamber a sola da sapatilha de Adriano, devido a uma aposta parva que fiz durante o calor do jogo. Quando me olho no espelho, todos à minha volta a festejar no meio do vapor dos duches, a minha língua está verde.

Estou na Covilhã, quer dizer, estou na estação do Tortosendo à espera do comboio. Estamos sentados ao sol, a estação deserta. Comemos sandes e bebemos sumos de pacote. Pomos moedas na linha do comboio. JM está por lá, também Maia, também Marco ("Rato"). Marco inventou-me duas alcunhas, e se forem ao Fundão elas ainda devem soar familiares a alguns ouvidos: "Balão" e "Esgalhado". Durante um ano chamavam-me habitualmente Balão, uma alcunha que nunca percebi mas que não discutia porque a anterior era "Coninhas" (graças aos meus primos mais velhos). O nome "Esgalhado" vem do grande jogador dos sub-23 João Esgalhado, um portento do basket que marcava que se fartava e fazia sexo com a namorada nos balneários. Eu não tinha nada a ver com o João Esgalhado, mas ele impressionava-me.

Estou na Covilhã, agora sim, e Repolho lança-me no jogo para evitar uma derrota por mais de cem pontos contra a selecção da Madeira. Faço uma falta feia, sou avisado pelo árbitro. Mais tarde recebo uma medalha de melhor marcador de lances livres do torneio. Os tempos da selecção foram muito bons. Catiqui acabou por ser afastado, mas foi bom jogar com os covilhanenses Miguel, Eduardo (tinha montes de pelos nas pernas) e Adónis (não é alcunha). No caminho para o Fundão a carrinha mais estafada das Beiras pára para deixar Diogo "Monguito" e Rui "Monga" no Tortosendo ("Mongatótólândia").

Estou no Fundão, por fim. Quer dizer, estou no início. É o meu primeiro ano no basket e Bento, um jogador carismático e que veste uma camisola oficial dos Lakers, espera por mim no balneário para me dar mais uma sova. A única coisa que me impede de ser obliterado pela sua fúria incompreensível é o facto de ser primo de duas lendas do basket do Fundão: Mokas e Mini-mokas. E eu nem sei como continuava a ir duas, três vezes por semana aos treinos, com todas aquelas coisas menos boas que me lá esperavam. Talvez tenha sido o JM, que eu adorava. Talvez tenha sido Repolho, que na altura já confiava em mim. Ou talvez tenha sido a premonição de que eu e aquele clube um dia acabaríamos por, de uma forma estranha, fazer parte da história um do outro.

domingo, julho 11, 2004

Lx

Ela costumava aparecer em minha casa aos domingos de manhã. Trazia sacos de roupa suja. Isso foi quando eu ainda vivia em Benfica.
Saíamos a passear para as ruas perto do cemitério. Eu não comprava flores, comprava fruta. Sentávamo-nos nos parques de Benfica a ver os miúdos a jogar futebol e as mulheres a estender roupa. Apanhávamos sol. Falávamos alemão. Depois voltávamos para casa.

Eu cozinhava um almoço, comíamos em silêncio - eu a ver as notícias na televisão, ela a olhar ora para mim ora para o prato. Depois eu lavava a loiça e ela deitava-se no sofá da sala. Descalçava-se, cortava o som à televisão. Quando eu voltava à sala, a limpar as mãos às calças de trazer por casa, ela estava em posição fetal no meu sofá a dormir. Depois eu acordava-a e ela voltava ao emprego, que nessa altura era para os lados do Parque das Nações e consistia em acompanhar turistas holandeses.

O meu último ano da faculdade: os meus amigos estavam ou em Paris, ou com as namoradas, ou a falar com raparigas que depois se tornavam suas namoradas. As minhas amigas estavam demasiado ocupadas a pensar em namorados (categoria abstracta). Passava dias inteiros no cinema: Cinemateca na Rua Castilho, Palácio Foz nos Restauradores, Cine-222 e Monumental no Saldanha, Biblioteca-Museu República e Resistência, Quarteto, King, Cidade Universitária, eu corria aquela merda toda. Via tudo: Frenzy (de Hitchcock), Johnny Guitar, Alexander Nevskii, Solaris (de Tarkovsky), 2001 Odisseia no Espaço, Apocalypse Now Redux - tudo o que me levasse para sítios diferentes. Via filmes indianos sem tradução, via ciclos do Woody Allen, ciclos do Stanley Kubrick. Numa sessão vi o Camacho Costa semanas antes de ele morrer. Na maior parte das sessões eu era uma das únicas cinco pessoas na sala. Normalmente escolhia os filmes mais longos, deixava-me por lá ficar no escuro.

E não podia ir à faculdade devido a uns sarilhos em que nos tínhamos lá metido, coisas que metiam dinheiro e influências e das quais não quero falar agora. A Carris tinha substituído os CTT no lugar de "minha empresa pública favorita". Fartava-me de andar, visitava galerias obscuras para apresentar portfolios que não eram meus e nenhuma delas me aceitava; visitava museus e passava mais tempo na casa de banho dos museus do que propriamente a apreciar a colecção. Dava por mim no Campo de Santana, depois na Graça, depois nas ruas à volta do Castelo, depois em Campolide, depois em Campo de Ourique. A certa altura estava em frente da mesquita de S. Sebastião a ler e reler uma mensagem escrita de telemóvel que tinha recebido meses antes. Outras vezes ia parar a Santos e as ruas ainda cheiravam a cerveja, os passeios juncados de copos vazios. Cruzava para a frente e para trás a linha do comboio que separa a 24 de Julho do porto de Lisboa, o dia encaminhava-se para o fim, voltava para casa.

E sempre que telefonava os meus amigos estavam ou deprimidos ou inseguros, e eu devo ter parecido uma rocha no meio daquele temporal todo porque, não sei como, distribuía conselhos sábios para aqui e para ali - era a minha forma de dizer que estava vivo. Um dia (acho que foi o dia dos meus anos) entrei na Igreja da Madalena e depois de algum tempo pareceu-me que as luzes tinham piscado e eu pensei que Deus me estava a tentar dizer algo. Nesse dia, à medida que a manhã avançava, eu ia caminhando - Sé, São Vicente, Panteão, Alfama (onde um dia tínhamos encontrado um caixote cheio de fotografias antigas), Sta. Apolónia, e estava farto outra vez e voltava para casa. Estava sempre a voltar para casa.

De modo que quando ela me aparecia em casa nos domingos de manhã eu não tinha muito para lhe dizer e por isso íamos passear em Benfica - as ruas do Lobo Antunes, as primeiras páginas dos jornais desportivos, as flores junto ao cemitério que eu não comprava, as oliveiras calcinadas nos jardins, destroços de ferro, eucaliptos, casas e famílias, os passeios cobertos de merda. Noutras alturas, eu estava obcecado com fotografias e levava-a aos mercados sujos e a pequenos monumentos suburbanos de segunda, e por vezes à noite eu ia para as ruas vazias de Benfica e a polícia vinha e ameaçava-me a mim e ao modelo, despido, no chão, que eu fotografava com um misto de medo e gula.

E por isso não admira que Lisboa esteja povoada de fantasmas da minha autoria, pessoas meio mortas meio vivas que ora preservo ora enterro, pessoas que falam muitas línguas e que parece que nunca me ouvem, seres, entidades, ideias apenas que eu sustentava e carregava às costas naquelas manhãs e tardes em que lentamente aprendia a olhar. A Câmara Municipal construia jardins e abria espaços e eu, obediente, ia ocupando, dando uso, gastando e gastando-me. E era incrível a rapidez com que me esquecia dos passos que dava, incrível a tentação de repetir os mesmos caminhos uma e outra vez.

sexta-feira, julho 09, 2004

Rio das Pérolas (V)

O Milhafre regressa dos Apalaches. Três raparigas passam em frente à porta do hotel e alguém do sexo masculino faz um comentário – uma ri-se, a outra não, a outra não ouviu. No quarto ao lado do meu ela está a tomar um duche nocturno e talvez a pensar em mim. No prédio em frente pelo menos duas mulheres pensam em como seria “giro” se de repente os testículos dos seus maridos caíssem na sanita. Alguém no andar de baixo tenta lamber o seu cotovelo esquerdo, e ao seu lado uma mulher com uma máscara de látex muda de canal cada três segundos. O Milhafre prepara cuidadosamente a cama para dormir. Um empregado do hotel pensa distraidamente se alguém notaria se ele urinasse na sopa de amanhã. Uma empregada de hotel pensa distraidamente se alguém notaria se ela amanhã não aparecesse para trabalhar, e quanto tempo tardariam a encontrar o seu corpo sangrado na banheira. Pelo menos dez pares de namorados, em quartos separados, fazem cócegas uns aos outros e riem-se muito e depois param, ficando silenciosos. A equipa de futebol de alguém ganha, a equipa de futebol de alguém perde. Alguém vasculha febrilmente sacos de compras, soluçando, dizendo asneiras em chinês. Alguém fura preservativos com um alfinete. No meu quarto, o Milhafre empijamado ronca. Eu estou a desfazer febrilmente um saco de chá, numa mesa sobre tudo isto, as luzes da cidade e aquelas casas e pessoas todas constituindo muito mais do que alguma vez poderei compreender. Considero por momentos masturbar-me, reconsidero, olho para o quarto, fecho os olhos. Cruzo os braços, arrepiado, e suspiro. Não vou dormir, mas também não vou fazer mais nada.

Rio das Pérolas (IV)

E eu estou outra vez deitado na cama e ela está sentada ao meu lado e o Milhafre está no seu ninho nos Apalaches a dar minhocas mastigadas aos milhafres-bébés, e eu andei a tomar demasiadas coisas ao mesmo tempo e ela lê umas coisas que eu escrevi e eu quero adormecer abraçado a ela. Quando ela sai eu fico subitamente desperto e olho pela janela para as luzes da cidade durante quinze minutos-quarenta segundos, depois ponho umas gotas nos olhos, depois troco de cuecas três vezes, depois faço e desfaço as malas. Durante este período, em que basicamente estou a ponderar se vale a pena ter fé na permanência do que é genuinamente humano, uma série de coisas acontece no hotel e à sua volta.

Rio das Pérolas (III)

E eu estava seriamente em jet-lag e só queria fugir do calor e dia sim dia não tomava Halcion e mais umas coisas que agora não vou dizer, o que me fazia sonhar com macacos a dançar e me provocava ejaculações nocturnas. Acordava demasiado cedo com uma robot a falar em chinês mecanicamente, e eu tentava inutilmente falar com ela e a certa altura estava a gritar-lhe para se calar e só depois me apercebia que apenas tinha de poisar o auscultador. Descia ao jardim para ver as raparigas fazer tai-chi e tomava notas mentais dos movimentos do tai-chi, que normalmente se apagavam dez segundos depois. Bebia águas com gás enquanto as raparigas faziam tai-chi, depois voltava para o lobby do hotel e adormecia num sofá. Bebia outras coisas estranhas quando ninguém estava a ver. Máquinas fotográficas provocavam em mim a reacção instintiva de mostrar o dedo do meio. No McDonald’s os sundaes tinham amendoins.
E passava muito tempo sozinho e alguém se preocupava comigo e alguém me vinha sempre falar de Nietzsche e o meu companheiro de quarto chamava-se Milhafre – as pestanas demasiado grandes de quem dorme demasiado.
Em Hong-Kong andei à procura de lésbicas, não sei porquê; andei também à procura de uma máquina fotográfica. Em Hong-Kong experimentei misturar-me com os ingleses e fechar os olhos e tentar imaginar-me em casa. Não sei porquê. Comia muito, ia à casa de banho a correr mas quase nunca chegava a vomitar.

Rio das Pérolas (II)

Eu estou deitado na cama e o meu quarto (outro quarto) está cheio de gente e eu espreito e ela está deitada no chão ao lado da cama, a olhar-me, a sorrir-me, o pijama vestido, e ela mexe no cabelo – e eu amo esta recordação. Depois eu estou no lobby do hotel e não me lembro de mais nada a não ser de toda aquela gente à minha volta e eu sem perceber. E no Rio das Pérolas ninguém falava a nossa língua, ninguém gostava de nós, mas mesmo assim vivíamos como reis – pelo menos é assim que ela se lembra porque do Rio das Pérolas eu pouco mais recordo do que a água negra, os bichos estranhos que imaginava no fundo.

Rio das Pérolas (I)

Eu segurava a mão dela junto ao Rio das Pérolas, e era noite ou pelo menos assim me lembro e eu segurava a mão dela - e a água estava quente, sem ondas. Saltávamos rochedos.
E pelo menos é assim que ela se lembra porque do Rio das Pérolas eu só guardo a escuridão, a água parda e quente, e a vaga memória de um toque. Um afago. O que poderia ser a mão dela, ou talvez outra coisa.
Eu estava cansado e não queria falar com ninguém. E, no Rio das Pérolas, apenas os olhos dela (ou o que eles significavam) serviam para me manter desperto. E mesmo assim não era suficiente para me aperceber de nada. Tudo me escapava, não me sentia vivo.
Os olhos dela em Lisboa, depois os olhos dela num avião qualquer, eu a perder os olhos dela num quarto de hotel em Macau enquanto ela me deixava deitado na cama a torcer-me de pena. E juro que, se pudesse guardar para sempre o que os olhos dela significavam para mim, eu não necessitaria de procurar mais, e poderia enfim descansar.

quinta-feira, julho 08, 2004

Córdoba e eu

De onde eu vejo, o deserto parece não ter fim. Mas eu vejo o deserto apenas da janela fumada do comboio e acordo sobressaltado com uma voz a sussurrar-me ao ouvido 'Descontrai, é apenas a Andaluzia', e não consigo descobrir quem me disse isto porque a carruagem não tem ninguém a não ser eu - jornais desfiados espalhados pelo chão e o ar-condicionado fora de controlo porque estou a tremer e vapor sai da minha boca quando respiro. E lá fora apenas os montes da Andaluzia e aquele deserto e as árvores calcinadas, a uma hora de Córdoba, e tudo na paisagem está desfocado pelas ondas de calor que emergem do chão e eu estou a pensar em choque térmico, estou a pensar na cara suada e barbuda de um ferreiro do bazaar de Udaipur, depois estou a pensar em corpos nus cobertos de cachecóis de muitas cores. Estou a pensar em camisas Gap, em morcegos moribundos, no David Beckham, e basicamente estou a deslizar para dentro e fora de sonhos e a quinze minutos de Córdoba eu começo a sentir um ligeiro ataque de pânico e, cravando as unhas nos abdominais tentando não sei porquê segurar-me, eu começo a rever mentalmente o que se vai passar nos próximos seis dias e meio.

Dentro de dois dias, seis horas e treze minutos eu vou adquirir mais um vodka numa taberna de uma rua escondida numa cidade esquecida a duas horas de Córdoba, e vou pensar distraídamente porque raio estou a beber vodka numa taberna.
Dentro de dezasseis horas e quarenta minutos eu vou espreitar sobre um muro de um terraço e vou ver um cão parecido com um feto gordo a tentar matar-se, olhando-me pelo canto do olho e odiando-me, e eu vou provocar aquele cão e odiá-lo de volta e incitá-lo a afogar-se na corda com mais força.
Dentro de três dias, três horas e trinta e quatro minutos eu vou estar num jardim em Priego de Córdoba a olhar o deserto e as árvores que começam a descansar de mais um dia de fogo, e vou cobrir uma folha branca com vários tons de castanho e com riscos furiosos de preto, e vou basicamente amuar enquanto ela desenha qualquer coisa equilibrada e saudável a trinta metros de mim.
Dentro de três horas e três minutos eu vou estar deitado na cama, cheio de vontade de mudar de roupa, enquanto ela me tira fotografias e, na rua, uma procissão interminável de lambretas passa.
Dentro de vinte horas eu estou deitado no sofá em jejum a ler um livro sobre dragões no qual não me consigo concentrar, e depois de adormecer outra vez e sonhar que estou dentro do livro 'Glamorama' de Bret Easton Ellis, depois de acordar suado e em pânico oitenta minutos depois ela está sentada em cima de mim e eu estou a tentar tirar-lhe o soutien, beijar-lhe os mamilos frios.
Dentro de dois dias, oito horas e vinte e três minutos e dentro de três dias, sete horas e dezasseis minutos nós vamos tentar fazer amor, o que não resulta porque eu estou demasiado bêbado e ela "não pode", respectivamente. Antes destas ocorrências nós vamos estar a comer coxas de rã num restaurante, apanhando o ar fresco da noite, junto de gente normal.
Dentro de quatro dias, duas horas e um minuto, na esplanada do Café Rigolet em Málaga, um súbito estampido vai soar numa mochila Eastpak, seguido de uma explosão rápida e avassaladora. Uma rapariga japonesa, os tímpanos rebentados e o choque na cara cravejada de vidros, vai tentar lidar simultaneamente com dois factos: ambos os seus braços foram arrancados à altura do cotovelo e tudo o que resta do seu noivo é um torso, um braço e duas pernas ainda sentadas na cadeira à sua frente. Depois de um silêncio incrédulo de alguns segundos, gritos vão começar num raio de cinquenta metros à volta da cratera onde costumava ser o Café Rigolet em Málaga.
Dentro de quatro dias, uma hora e quarenta e oito minutos eu vou estar na abertura de uma exposição de arte, ensonado e no geral fora de mim, e vou passar os seguintes cinquenta e três minutos a ver desenhos de mulheres nos quais os órgãos genitais foram marcados a vermelho. Canapés vão ser fornecidos, gente de Madrid vai lá estar, boleias vão ser pedidas e concedidas.
Dentro de quatro dias, vinte horas e não sei quantos minutos eu vou estar no terminal de comboios de Córdoba a falar ao telefone com a minha mãe. Vou tentar lembrar-me das minhas deixas enquanto olho distraídamente para: a) uma fatia de bolo de chocolate a derreter numa mesa da cafetaria, b) ela a passear em frente a uma montra, subitamente bela, c) alguém a segurar por uma trela o que me parece ser um lobo.
Dentro de cinco dias, não sei quantas horas e não sei quantos minutos eu vou acompanhá-la enquanto ela experimenta vestidos de noite, e vou procurar em várias lojas toiros de plástico e vou ver quinze variedades de toiros de plástico e não vou comprar nenhuma, acabando por me decidir por anjos de plástico. A empresa de catering que apoia as filmagens vai fornecer torradas e nós vamos comê-las com tomate e azeite. Arte vai continuar a ser vista, apreciada, comentada.
Dentro de cinco dias, três horas e quinze minutos, depois de uma complexa sequência de autorizações, mensagens de código e sinais, um argelino a correr vai ser abatido com uma espingarda sniper Tippmann A-5, num bairro nos arredores de Barcelona.

E pronto. Dentro de dezasseis minutos eu vou aproximar-me da porta do comboio e vou olhar em volta e durante alguns segundos vou perder o controlo sobre os meus pensamentos e vou olhar para trás para o realizador (com o qual tive uma discussão acalorada no bar do comboio, à saída de Madrid) e ele vai fazer um movimento impaciente com a mão, querendo obviamente dizer com isso que não posso ficar ali parado e tenho de seguir, seguir, seguir.

terça-feira, julho 06, 2004

Hoje

Estou quase para ir lá fora, hoje, ao anoitecer, quando o sol estende uma passadeira dourada desde o sítio onde me encontro até ao fim do mar, quando de repente começa a chover levemente e, mesmo junto à minha janela, uma banda filarmónica toca 'A Whiter Shade of Pale'. Estive quase a ir lá para fora, dizia, e talvez atravessar na praia a pequena barreira de algas, povoadas por milhares de moscas-da-areia, e ficar a um metro das ondas cinzentas, sentado, agarrado aos meus joelhos, a ouvir Housemartins.
Em vez disso, depois de acabar o meu jantar solitário na cozinha semi-escura, deixei-me ficar, encostado ao frigorífico, e a pensar se havia de lavar a loiça ou ir visitar a minha vizinha das macumbas. Acabei por fazer as duas coisas - mas antes, ainda sentado, o sol prestes a desistir de mim e de nós, lembrei-me subitamente de um poema, e em trinta segundos acabei por compô-lo totalmente - coisa que costumava ser normal em mim e que já não fazia há muito tempo.
Que pretensioso, dizer que se escreve poesia. Os meus poemas nunca me deram trabalho nenhum - por isso eu não sou um poeta: porque não me dói. Só se é mãe se se tem um parto. Os poemas, ao contrário, passam por mim, vêm de outros sítios, juntam-se ocasionalmente e entrelaçam-se na minha mente e depois eu escrevo-os - e chamo-os meus, e digo que sou o autor. Mas os poemas são as palavras que eu ouvi a todas as pessoas por quem passei, os poemas são mais do vento, e mais dessas pessoas, do que propriamente da minha mão.
Ainda assim, aqui está. Já há muito que não escrevia, dizia, mas alguns versos deste poema andavam a pairar na minha mente há muito tempo, como passarinhos que não encontram o seu parceiro. Talvez daqui para a frente possa recomeçar a escrever o que, um pouco ingenuamente, chamo poesia.

Este irá juntar-se aos vinte e tal que já escrevi para o meu sexto(!) "livro"(!) de poesia. Para os que se interessam, vai chamar-se "A Minha Vida Amorosa, pt.2" - tem estado parado ultimamente. Não sei porquê, não me tem surgido aquele impulso súbito e momentâneo de escrever poemas - aquela espécie de leveza da alma. Tenho a certeza que alguns de vocês perceberão. Dei recentemente uma vista de olhos ao que já está escrito e, até agora, não me parece que este Vida Amorosa pt.2 tenha muita qualidade: a maior parte dos poemas é sobre mães adolescentes; há uns quantos sobre japonesas em bibliotecas; há um sobre o Michael Corleone e outro sobre as Bangles; umas quantas aberrações escritas em Paris; um projecto de letra para os Mão Morta (como é natural, esta versa sobre mães adolescentes e raparigas que perdem a virgindade demasiado cedo). Alguns esclarecimentos: 1) nunca houve "A Minha Vida Amorosa, pt. 1"; 2) estes "livros" vão para a gaveta e, uma vez terminados, nunca mais ninguém os volta a ler, nem eu; 3) reafirmo que não percebo nada de poesia.

Bem, aqui vai o poema. E boa noite.


Eu estava enganado.
Eu cheguei até ti com estas mãos a cheirar a maçãs,
E eu estava enganado. Eu não posso
ser a rainha, a filha pródiga regressando a casa depois da guerra,
de volta a todos os rapazes que a amam e deixam de amar.
E não posso, "Não podes chegar aqui depois deste tempo todo
e querer que tudo continue na mesma".
Mas não há problema, não há mesmo nada de mal:
eu estava apenas enganado.
E ninguém está prestes a gritar.

segunda-feira, julho 05, 2004

Companheira

Às vezes penso que deves ser a pessoa mais bondosa do mundo por fazeres estas coisas, porque eu sei que tu pensas que estas coisas que fazes são o melhor para mim - ainda que eu o não admita, ainda que eu pense que estás apenas a ser má. E nesses momentos em que a tua suposta bondade me atinge e me maravilha, eu lembro-me das tuas provações e do sofrimento que eu penso que deves sentir, um sofrimento agudizado pelo facto de teres de o calar - pelo bem de nós dois. Eu sei.
Eu estava a morrer naquela cama em Paris, eu sentia que a minha alma me estava a abandonar, sentia-me despossuído - e tu sabias isso, e quanto eu te disse que tu tinhas sempre razão tu fizeste uma longa pausa e depois disseste-me apenas que nem sempre, nem sempre tinhas razão. E eu sei que estavas de olhos abertos no silêncio, no escuro, de costas para mim, e sei que estavas apenas a dizer a verdade. Provavelmente sentias que essa era a única coisa que podias dizer. E não era por não saberes mais nada, não era por seres estúpida, era porque estavas cuidadosamente a medir as palavras, pensando em mim e na minha dor, pensando no melhor para mim, pensando também em ti, claro, porque querias recomeçar a tua vida - e, aliás, a tua nova vida estava mesmo diante dos meus olhos, e eu tinha de pensar bem onde colocar os meus pés quando caminhava no teu quarto.

Outras vezes, eu penso que deves ser apenas má ou insensível e então eu odeio-te. Penso no legado que deixaste: um rapaz magro, entregue à Natureza, um rapaz cujas primeiras experiências foram isto, um rapaz que deixaste sem certezas, sem termos de comparação, sem maneira de saber se há algo mais do que isto. Um rapaz sem maneira de saber se carrega em si algo de errado. Um rapaz a quem não deste respostas, ou pelo menos respostas que ele pudesse compreender.

Afinal, não te posso culpar de nada, mesmo no meio destas recriminações. À luz do que tenho vindo a pensar, não há culpados. Somos todos alegres elefantes, desastrados, partindo cristais, partindo-nos uns aos outros, umas vezes bem intencionados, outras vezes apenas maus como as crianças são más - apenas porque não sabemos melhor do que isto.
Sim, elefantes, cinzentos e de pele dura como os elefantes. Se nos doesse tanto como devia doer, estaríamos mortos já. E, segundo aquele velho provérbio swahili, 'Quer os elefantes lutem ou façam amor, é sempre a erva que sofre'.

Mas porque se rompeu a minha armadura? Quando foi isto? É normal que tudo o que supostamente me deveria proteger me surja tão frágil, tão precário? Algum dia poderei despir por completo esta inútil armadura, esta pele de elefante, para me revelar a olhos amigos, e entre braços amigos adormecer nu, livre de todo este peso, de todos estes cuidados?

domingo, julho 04, 2004

Espírito

A equipa portuguesa de futebol ganhou porque antes das partidas eu encomendava danças de voodoo a uma vizinha para que os espíritos intercedessem favoravelmente, e nas manhãs a seguir aos dias de jogo ela vinha bater à minha porta e olhava-me com uma cara sorridente dizendo: "See? It worked!"
E nunca cheguei a saber de que se tratavam essas danças mas como o segredo era um factor imprescindível eu nunca perguntava nada, e continuava nas vésperas dos jogos a pedir-lhe que se pudesse dar um jeitinho lá com o seu voodoo seria óptimo. E por isso, mas também por não me importar muito com o futebol, eu nunca estava nervoso durante os jogos - sentia-me como se estivesse a ver uma gravação em vídeo de uma série dos anos 80 (daquelas em que o McGyver se conseguia sempre safar da prisão e libertar uma aldeia indefesa das garras de um regime militar opressivo, num país sul-americano não identificado).
À distância, as dores e as alegrias do futebol pareciam-me cenas de um teatro cujo guião eu sabia demasiado bem, e perder seria sempre pior do que ganhar e eu não sei porque é que ser vencedor tem necessariamente de ser melhor do que ser derrotado. O meu pequeno, pobre país, que eu amava como uma pessoa ama os seus pés, agitava-se e festejava e, pelo menos uma vez, desfrutava do gozo de estar no topo do mundo, acima de todos os outros - como se isso, afinal, valesse de alguma coisa.
De modo que nesses dias, atingido por uma súbita febre de futebol (ou simples desejo de escapar), eu jogava praticamente dia sim dia não, e todos os dias acabava com dores nas virilhas e joelhos esfolados - e adorava esses joelhos em sangue porque me faziam lembrar quando era criança, quando o corpo ficava de facto ferido devido a essa sede quase assassina de viver. Sempre admirara os miúdos que não tinham medo de cair no chão, aqueles para os quais a competição era apenas uma outra forma de ter um pesadelo: uma coisa à qual não se dá demasiada importância, mas igualmente uma coisa à qual não se pode escapar.
No final dos jogos, ao fim da tarde no campus deserto, eu demorava-me pelos balneários vazios, apreciando o silêncio puro e olhando para os meus pés cheios de bolhas, pensando naquele país que me matava e onde estavam as pessoas e as coisas que ainda me poderiam manter vivo. E nessas alturas, acabado de sair do duche, os músculos doridos e uma ou outra nódoa negra a despontar, eu queria abraçar essas pessoas todas num único, final, catártico abraço - e depois mergulhar fundo, ou voar bem alto, ou disparar para bem longe, rápido, num raio de luz, como no Dragon Ball.
Pensava, por exemplo, em todas as pessoas que tinha abandonado, em todas as pessoas que sofriam pela minha ausência, e que tinham vindo a sofrer ao longo de todos esses anos devido à minha inconstância, ao meu ensejo de fugir, às minhas dúvidas, à minha altivez. Pensava que isto não era justo para ninguém, e que não havia culpados e não havia inocentes. Pensava que alguma coisa tinha corrido mal, alguma coisa tinha corrido mal mas a culpa não era só minha.
E não queria pedir perdão por nada, queria apenas que todos, num acordo súbito, numa espécie de revelação suave mas decisiva, percebêssemos a lógica interior deste mundo humano onde nos magoamos uns aos outros apenas por respirar, onde nos batemos usamos chupamos incendiamos, onde acabamos sozinhos, face ao acumular de assuntos não resolvidos. Em tudo isso eu pensava, sentado nos bancos corridos dos balneários vazios, o silêncio e os ventiladores, o vapor dos duches, os cacifos rebentados, os meus pés deformados. A milhares de quilómetros de distância, o meu país gritava e saltava a uma só voz, fazia estremecer o solo e agitava a superfície das águas de todos os lagos e de todas as piscinas, num protesto que era de glória ou era de birra, ou era de tédio ou era de outra coisa qualquer.
Eu pensava na minha vida desencantada.

Entretanto, no futebol, tínhamos ganho. Ou tínhamos perdido, já não sei bem. Mas tudo continuava na mesma: quem odiava iria continuar a odiar, e quem amava um dia iria odiar também, e novos amores iriam surgir, por aqui e por ali, pequenos amores para pequenas pessoas, grandes ilusões para almas do tamanho do mundo, e a vida até iria ser agradável e tudo isso.
Mas a dor, a dor de milhares de silêncios e torturas não poderia ser refeita por um momento de amor. Pelo contrário, o maior amor seria para sempre maculado por um ínfimo instante de dúvida. E isso era a coisa que para mim era mais injusta, naqueles dias em que eu jogava futebol no intervalo dos meus estudos, para esquecer sobretudo, para não ter de sentir necessidade de estar a fazer outra coisa qualquer.

Quando tudo acabou, fui visitar a minha vizinha para lhe agradecer pelo voodoo. É curioso que ela tenha aceite meter-se com aqueles espíritos todos (aqueles espíritos cujas mudanças de humor poderiam tornar-se fatais) sem receber nada em troca e apenas porque eu lhe tinha pedido uma vez, meio a brincar. Havia pessoas que diziam que ela gostava de mim.
Ela recebeu-me no seu quarto desarrumado e perfumado, os instrumentos do voodoo espalhados no chão no meio das fotocópias, das revistas cor-de-rosa, das coisas da maquilhagem. Eu sentei-me na cama dela a ler as últimas notícias das celebridades enquanto ela escrevia umas coisas no computador para a sua dissertação sobre o Ruanda. Depois eu perguntei-lhe: "Could you bring the spirits back into my life?" e ela riu-se e respondeu "I'll see what I can do", e levou-me à cozinha (o mar revoltoso em mais um anoitecer naquele Verão frio) onde me ofereceu chá e dois, três, quatro dedos de conversa.


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